quinta-feira, 25 de março de 2010

Smultronstallet




Na sequência do Post anterior, decidi fazer o mesmo para o meu último trabalho: Morangos Silvestres, do Ingmar Bergman.

Ficha Técnica:

Realização: Ingmar Bergman
Guião: Ingmar Bergman
Cinematografia: Gunnar Fisher
Elenco: Victor Sjöström (Dr Isak Borg); Bibi Andersson (Sara) ; Ingrid Thulin (Marriane Borg); Gunnar Björnstrand (Evald Borg); Jullan Kindahl (Agda); Folke Sundquist (Anders); Björn Bjelfvenstam (Viktor); Max Von Sydow (Henrik Åkerman)
Ano de lançamento: 1957
País de Origem: Suécia
Cor: Preto e Branco
Idioma: Sueco
Duração: 91 minutos


Resumo:
Quando Isak Borg (Sjöström), um viúvo, solitário e envelhecido médico atinge o 50º ano desde o início do seu mester, é feita uma celebração em sua honra, em Lund. Marriane (Ingrid Thulin), sua nora, ao saber que Isak vai de carro, decide acompanhá-lo.
Durante a viagem, Marriane não cessa de criticar a conduta do seu sogro. Desde repreensões concernentes ao seu egoísmo e narcisismo a julgamentos quanto á sua insensibilidade e pedantismo, Isak não é poupado.
À medida que a viagem avança, Isak e Marriane começam intimar-se um pouco mais, expandindo a sua relação de sogro-nora a algo mais caloroso. O médico tenta confidenciar-lhe preocupações que o atormentam e decide mostrar a Marriane a casa de férias da sua infância, fazendo um pequeno desvio na rota original.
A partir desta parte a temporalidade do filme divide-se em 3: As memórias de Isak, o presente e a sua consciência.
A sua primeira memória remonta ao tempo em que Isak era jovem e nutria uma paixoneta pela sua prima Sara (Bibi Andersson), com quem estava secretamente enlaçado. Invisível para os figurantes dos seus devaneios, Isak assiste à festa de anos do seu tio Aron (Yngve Nordwall), especialmente aos descuidos infiéis de Sara com o seu irmão [de Isak], Sigfrid (Per Sjöstrand).
De repente, uma voz estranha acorda-o do seu universo interior. Sara (também interpretada por Bibi Andersson), uma rapariga em muito semelhante ao seu primeiro amor (não só no nome), juntamente com dois rapazes - Viktor (Björn Bjelfvenstam) e Anders (Folke Sundquist), pedem boleia até Lund.
A viagem está animada e os Borg estão entusiasmados com a folia dos jovens. Porém, num acto altruísta, Isak oferece boleia a um casal que acabara de sofrer um despiste e uma consequente capotagem. Irascíveis e irritantes, os conjugues Alman (Gunnel Broström e Gunnar Sjöberg) começam a discutir e a bater-se perante os outros viajantes, importunando-os. Marriane, incomodada, expulsa-os do carro e a viagem continua.
Depois de um agradecimento sincero de Herik Akerman (Max Von Sydow), um gasolineiro por quem o Dr. Isak Borg fez muito, e de um vigoroso almoço filosófico, Isak decide visitar a sua mãe, algo que não fazia havia muito.
Aqui o filme volta a passar para outro plano, desta vez o da mente de Isak, que adormece. Depois do primeiro sonho (passado no início do filme mas mencionado apenas agora por motivos de estruturação desta sinopse alargada), em que Isak se vê sozinho numa ruela deserta e desconhecida, totalmente perdido e desorientado, até que aparece uma carroça arrastando um caixão com ele próprio lá metido; o protagonista tem um segundo sonho; este ainda mais perturbador:
O sonho começa com Isak a contemplar, aterrorizadamente, Sara e o seu irmão Sigfrid, já adultos, juntos e felizes. A sua amada diz-lhe que tem de a esquecer e perdoar, deixando os
fantasmas do passado para trás. Subitamente, o ambiente que o circunda muda e encontra-se numa sala de aulas universitária, prestes a fazer um exame, levado a cabo pelo supra mencionado Mr. Alman – um dos conflituosos conjugues. Este exame é feito à sua capacidade de se avaliar a si próprio psiquicamente (metaforizado através de exames médicos a outros pacientes, que Isak faz erroneamente). A conclusão é a de que é incapaz de o fazer. – É inconsciente, tendo, portanto, chumbado. O examinador diz-lhe então que é, entre outras coisas, amotivo, indiferente e egoísta. Citando um excerto da acusação: “Mr Borg é culpado de ter culpa”. Este exame pode também ser interpretado como um “teste” à personalidade de Borg, mas analisaremos isso mais à frente, noutra secção deste trabalho.
Mais tarde o examinador leva-o a assistir à cena que talvez tenha mais marcado toda a sua vida. A infidelidade da sua mulher Karin. Assistimos também a Karin tecer uma panóplia de vitupérios dirigidos ao seu marido, acusando-o de frieza, cinismo e hipocrisia, dando especial ênfase à sua incapacidade de perdoar.
Voltando à realidade, assistimos agora ao paroxismo de intimidade confidencial entre Marriane e Isak.
Primeiro, a nora aceita ouvir os sonhos do sogro (algo que tinha recusado anteriormente). Segundo, Marriane conta-lhe o seu maior segredo: Que esteve grávida e que Evald (Gunnar Björnstrand), o seu marido (um afirmado niilista existencial), a obrigou a abortar, sob o pretexto de que trazer uma criança ao mundo só ia dar mais sofrimento a ele e ao bebé. Marriane, contudo, está ainda grávida, e acompanhou Isak até Lund para dizer ao seu marido que rejeita as suas condições.
Finalmente chegam a Lund e a cerimónia corre como era esperado. É noite de festa mas Isak, dados os seus setenta e cinco anos, tem de se deitar cedo. Despede-se ternamente de Sara e dos seus acompanhantes, perdoa a dívida do filho, libertando-se da fama de avarento e medita sobre tudo o que se passara naquele dia. Fecha os olhos, volta ao seu mundo fantástico onde encontra a meiga Sara que lhe diz: “Isak, meu querido, já não há mais morangos silvestres”. Sorri. Abre os olhos. Morre.

Análise Crítica

Nesta análise crítica pretende-se focar o filme sob três pontos de vista diferentes:
- Tecer especulações quanto às oscilações gnósticas do realizador, dando principal ênfase às suas crenças, convicções e dúvidas respeitantes a assuntos de cariz esotérico e existencial, através duma análise sintética aos filmes “O Sétimo Selo”, “A Fonte da Virgem” e, mais detalhadamente, “Morangos Silvestres”, dado o seu intimo entrelaçamento temático.
- Interpretar o filme “Morangos Silvestres” dum ponto de vista psicológico, filosófico e explicativo.
- Criticar os aspectos técnicos do filme, ao nível da realização e actuação

Bengt Ekerot (esquerda) e Max Von Sydow (direita) em “O Sétimo Selo”

Cingindo-me aos filmes que vi de Bergman, a primeira questão metafísica que vi o realizador colocar é posta em “O Sétimo Selo”, metaforizada através do jogo de xadrez mais famoso da história do cinema entre Antonius Block (Max Von Sydow, um dos actores fetiche de Bergman, protagonista da Fonte da Virgem e secundário n ‘ Os Morangos Silvestres) e a Morte (Bengt Ekerot). Reduzindo muito aquilo de que o filme trata, a conclusão de Bergman é simples: Independentemente daquilo em que creiamos, do que façamos ou tentemos fazer, a Morte é inevitável. Mais vale conformarmo-nos e aceitar o que nos está predestinado do que suar as estopinhas a tentar combater esse facto. Partindo desta conclusão, Bergman, outrora dúbio quanto à inevitabilidade da morte, pergunta-se “Se vou morrer, como posso fazê-lo feliz, dando sentido à minha vida?” Ou, por outras palavras, “Qual é o verdadeiro sentido da vida?”. Para responder a esta questão analisaremos todo o trajecto de Isak, tanto no seu universo interior como no mundo físico que o envolve, na sua viagem de Estocolmo para Lund.
Logo no princípio do filme, Isak Borg começa por se descrever a si próprio como alguém adverso a relações sociais, o que o fez distanciar-se de qualquer contacto interpessoal, cingindo-se a pouco mais que si próprio. Isak considera-se, portanto, voluntariamente solitário. Assistimos depois a uma parafernália de críticas feitas pela sua nora Marrianne, que, como já vimos, o acusa de egoísmo, avareza, hipocrisia e dogmatismo. Inconsciente de ser tais coisas, o médico interroga-se: “Terá ela razão?”. Apercebendo-se da proximidade do seu fim (vaticinado através de sonhos fatídicos) e ponderando algumas das críticas da sua nora, Isak decide que é necessário redimir-se; Encetar uma odisseia interior com o propósito de apanhar todos os “Morangos Silvestres” da sua consciência, caso contrário não morrerá descansado.
Qual é, então, o primeiro passo a tomar nesta demanda pela redenção? – Sara. Durante toda a sua vida Isak esteve rancoroso para com ela e o seu irmão Sigfrid. Não estará na altura de esquecer… aceitar… perdoar? Isak revê esse triângulo amoroso na amistosa Sara e os seus dois pretendentes – Viktor e Anders, substitutos dos vértices originais Sigfrid e Isak.
Estando a consciencialização do primeiro passo concluída, por onde enveredar de seguida? Não é preciso procurar muito. A instável e conflituosa relação do casal Alman traz-lhe à memória a sua relação com Karin – a sua justificadamente infiel ex-mulher.
Seguidamente, ao fazer uma terceira paragem para visitar a sua envelhecida mãe, Isak redime-se da falta de contacto que havia mantido com ela, e dá outro passo na sua aceitação do casamento Sigfrid-Sara, ao pedir à mãe para lhe dar uma fotografia dele com o irmão.
A grande reviravolta psicológica e emocional de Borg dá-se no seu segundo sonho, pormenorizadamente relatado no resumo acima.
É por esta altura que Isak se começa a aperceber que não foi ele quem se afastou voluntariamente do resto das pessoas, mas o oposto. A aversão era recíproca. Karin traiu-o pela sua frieza, indiferença e hipocrisia, sendo ele o principal culpado pelo desenlace trágico da sua atribulada relação. Sara era jovem e não tinha qualquer tipo de vínculo bem definido com Isak, o que torna inadmissível todo o seu ressentimento e incapacidade de perdão.
Resumindo utilizando citações do filme, Isak falhou no cumprimento da primeira máxima dum médico: “ O principal dever de um médico é pedir perdão”.
Sobre este sonho pode dizer-se ainda um pouco mais, no domínio das interpretações pessoais e subjectivas. Mr Alman, o examinador, pode ser visto, dum ponto de vista católico, como S.Pedro, guardião das portas do céu, que procedia a uma averiguação da idoneidade de Isak para transpor ou não a porta que este guarda. Por outro lado, o examinador pode ser visto como o Super-Ego de Borg, que tenta corrigir os desvios da conduta do protagonista quanto ao caminho necessário a morrer em paz.
À medida que o filme avança, as convicções de Isak quanto ao sentido da vida vão-se transformando. Inicialmente partilhante das ideias do seu filho, de que a vida em si é desprovida de sentido e de que apenas a devemos viver por viver, desfazendo-nos de qualquer tipo de dependências que nos obriguem a vivê-la mesmo quando já não o quisermos (admitindo uma espécie de Niilismo existencial), Isak percebe que a vida deve ter como objectivo o alcançar de uma serenidade interior, um estado mental livre de remorsos e
rancores mas repleto de boas e louváveis memórias. Que o verdadeiro sentido da vida é o de um homem poder chegar ao último dia da sua vida consciente de que ajudou os outros, de que era querido pelos que lhe são próximos (os sinceros agradecimentos do gasolineiro e os amáveis elogios e amistosas declarações da jovem Sara - “Pai Isak, fica sabendo que é a ti que te amo. Hoje, amanhã e para sempre”, bem como o evoluir da sua relação com Marriane; não esquecendo a sua enternecedora relação com Agda, sua empregada, fizeram-no compreender o que era realmente essencial e chegar a esta conclusão), de que é internacionalmente respeitado, de que fez, no fundo, coisas boas, libertando-se das más.
Findando o seu percurso de renovação espiritual ao soltar-se da fama de avarento, perdoando a dívida de Evald, Isak atinge o estado que ambicionara, podendo, finalmente, morrer em paz.
Outro problema presente neste filme é o da existência de Deus, mais tarde abordado pelo realizador em “A fonte da Virgem”.
Através dos personagens Viktor e Anders, Bergman personifica as suas próprias dúvidas quanto a este tópico. A sua inclinação é, contudo, óbvia. Através da posição de Isak e de todo o providencialismo inerente a esta película, o realizador demarca a sua própria opinião. Para além de todas as alusões a Cristo e à religião católica (no seu sonho, Isak fura a mão com um prego, no caminho para a redenção), todas as coincidências ocorridas durante a viagem (aparecimento de uma rapariga idêntica a Sara num caso idêntico ao seu e do seu irmão, de um casal semelhante a Karin e a ele próprio) criam um paralelismo demasiado intimo para ser apenas coincidência, entre a sua viagem espiritual e física [de Estocolmo para Lund]. Essa excessiva intimidade sugere que terá havido uma intervenção divina em todo este dia, como se Deus os tivesse enviado propositadamente para ajudar Isak no seu caminho.
Três anos mais tarde, Bergman volta a este problema na “Fonte da Virgem”, onde se questiona se fará sentido acreditar em Deus quando, mesmo levando uma vida virtuosa e dedicada a Ele, as piores coisas possíveis acontecem. Volta, contudo, a reafirmar a sua posição gnóstica no final do filme, numa deslumbrante cena em que Deus se manifesta milagrosamente perante os protagonistas.

“A Fonte da Virgem”

“Morangos Silvestres”, contudo, não se limita a expor questões filosóficas e psicológicas de forma nua e crua. Há uma componente extremamente heartwarming, até mesmo tocante, do princípio ao fim. Desde a evolução enternecedora da relação entre Isak e a sua nora às discussões amorosas e afáveis entre Dr. Borg e Mrs. Agda, o filme caracteriza-se por uma ternura capaz de sensibilizar o mais frio dos espectadores.
Provavelmente no papel da sua vida (que por acaso foi o último), o actor e realizador sueco Victor Sjöström faz uma das interpretações mais brilhantes e comoventes de toda a história do cinema universal (mais uma vez, cinjo-me ao que vi – apesar das críticas mais exigentes concordarem). A para mim até então desconhecida, embora lindíssima Ingrid Thulin mostra como se pode demonstrar frieza, dramatismo e brandura sem o mínimo de over ou
underacting, no mesmo filme. Gunnar Björnstrand, este já mais característico do espólio habitual de Bergman, faz justiça à predilecção do realizador, demonstrando-se genial.
Quanto aquela que é provavelmente a minha actriz preferida, Bibi Andersson, pouco tenho a dizer. Apesar de lhe lamentar o talvez excessivo dramatismo na encarnação da Sara das memórias de Borg, o seu entusiástico e caloroso papel ao representar a Sara “moderna” redime qualquer erro que possa ter cometido e justifica, desta vez, a minha idiopatia.
Passando para o campo da realização e componente estética do filme, digo apenas que me sinto quase ridículo a tecer julgamentos sobre um dos cineastas mais geniais de todos os tempos. Todo o filme é um exemplo perfeito de mestria técnica e dirigista, e nem a ausência do habitual cinematógrafo Sven Nykvist (substituído com excelência por Gunnar Fisher) tira a perfeição a esta obra-prima.
Provavelmente um dos melhores filmes de Bergman e de sempre.

Nota final: 5/5

Q

Gentleman's Agreement



Este Post tem como base um trabalho feito para a minha escola, na disciplina de Filosofia e Cinema, pelo que tem, portanto, um formato diferente daquilo que costumo fazer aqui.

Ficha Técnica:

Gentleman’s Agreement
A luz é para todos
Direcção: Elia Kazan
Guião: Moss Hart (Baseado no romance de Laura Z. Hobson)
Elenco: Gregory Peck (Philip Green); Dorothy McGuire (Kathy Lacey); John Garfield (Dave Goldman); Celeste Holm (Anne Dettrey); Anne Revere ( Mrs Green); June Havoc (Elaine Wales); Albert Dekker (John Minify)
Ano de lançamento: 1947
País de Origem: Estados Unidos da América
Cor: Preto e Branco
Idioma : Inglês
Duração: 118 minutos

Resumo:

Viúvo e recém-chegado a Nova Iorque, o jornalista Philip Green (Gregory Peck) é requisitado pelo seu editor para escrever um artigo sobre Anti-semitismo. Inicialmente, Philip carece de ideias para a realização deste projecto, mas depressa percebe que ao fingir ser Judeu poderá escrever um artigo mais preciso e original, visto que seria vítima deste tipo de discriminação duma forma mais directa. O seu editor acha a ideia interessante e Philip é introduzido na sociedade Nova-Iorquina sob o véu do judaísmo.
Certo dia, durante uma festa, Philip é apresentado a Kathy Lacey (Dorothy McGuire), a quem, descaindo-se, revela a sua verdadeira identidade. Pouco tempo depois iniciam uma relação amorosa, onde se centrará grande parte da história.
É então que Philip, totalmente anti-intolerância, começa a descobrir que a revista para a qual trabalha, cuja fama é de ser liberal, é mais preconceituosa do que o que aparenta ser: Descobre que a sua secretária (June Havoc) é judia mas que, tendo tido a sua candidatura rejeitada aquando da sua primeira tentativa de obter emprego pelo facto do “lugar já estar preenchido”, volta a concorrer sob o pseudónimo de Elaine Wales, um nome americano, obtendo imediatamente o lugar. Em adição a isto, (numa cena memorável, comentada mais adiante neste trabalho) durante um almoço entre vários jornalistas ditos liberais, Philip sente-se discriminado pelo facto de “ser” judeu.
Por esta altura aparece em Nova Iorque Dave Goldman (John Garfield), um amigo de infância de Philip que é realmente judeu. Apesar de estar satisfeito com o trabalho do seu companheiro, Dave aconselha-o a ter cuidado. A revolta contra a intolerância pode ser perigosa.
Com o avançar da história o jornalista torna-se alvo de inúmeros casos de discriminação. Cancelamento de consultas médicas e impedimento de estadias em hotéis são alguns exemplos menores daquilo que vitimiza Philip. Contudo, o caso torna-se mais sério quando é o seu filho a ser vítima de injúrias desta índole. Os colegas, na escola, chamam-lhe “Porco Judeu” e, numa cena extremamente tocante, Tommy (Dean Stockwell) – o filho – queixa-se ao pai, embebido em lágrimas, por não perceber o porquê daquele tratamento.
Ao longo do tempo, Philip vai detectando em Kathy alguns sinais de anti-semitismo dissimulado que o transtornam. Cenas como a indisponibilidade de Kathy para ajudar Dave a combater a discriminação de que é alvo, as tentativas de reconforto a Tommy dizendo-lhe para não ficar chateado porque ele na realidade não era um “Porco Judeu”, que estava apenas a fingir; enfim, a inércia de Kathy perante a discriminação e todo o conformismo envolvente nas suas acções e atitudes fazem com que Phil cancele o casamento (estavam noivos) e acabe a relação. Revoltado, Phil decide abandonar Nova Iorque assim que o artigo seja publicado.
É publicado. É um sucesso.
Estava já Phil preparado para abandonar a cidade quando Kathy, depois duma longa conversa com Dave, se apercebe da estupidez dos seus actos e do quão horrível é, de facto, a intolerância. Pede desculpa a Phil e este aceita. Reconciliam-se e o filme acaba.

Análise Crítica


Após a leitura deste resumo ou a visualização deste filme, facilmente se percebe que o tema sobre o qual esta peça cinematográfica gira é a intolerância; mais concretamente o anti-semitismo. Por esta altura (finais da segunda Grande Guerra) os Estados Unidos eram um abrigo para muitos judeus, que, com medo da perseguição Nazi, decidiram exilar-se na “Terra das Oportunidades”. Percebe-se então a principal origem da grande afluência judaica para os Estados Unidos da América. Ora, como em todas as migrações, o choque cultural é algo inevitável, o que leva as mentes mais retrógradas a acabar por catalogar a cultura migrante como “invasora” e, por conseguinte, censurá-la e discriminá-la.
Porém, aquilo que para mim é mais curioso e atraente neste filme é o facto de não tratar do Anti-Semitismo radical, mas sim do dissimulado. Estamos já todos fartos e cientes do problema abordado em filmes sobre grupos Neo-Nazis ou racistas radicais. Está errado, não devemos fazer e devemos combater. Este filme não é nada disso. Os grandes problemas aqui tratados são algo de muito mais inconsciente, comum e actual: A hipocrisia social, o conformismo perante a discriminação e a indiferença que afecta uma grande maioria.
Apesar de já ter visto este filme há cerca de quatro meses, uma das cenas descritas acima (creio ter mencionado que lhe voltaria a pegar mais tarde – agora) continua visível na minha cabeça duma forma tão clara como da primeira vez que a vi. Absolutamente fascinante:
-Durante um almoço, Philip e o seu projecto sobre Anti-Semitismo são apresentados perante os membros da revista. Inicialmente recebido com copiosa cortesia, Phil senta-se e diz algo como “acho que este trabalho é importantíssimo, independentemente do meu próprio judaísmo”. Todos os convidados se calam, baixam os olhos e começam a comer. O silêncio pesa sobre a atmosfera da sala, que se torna lúgubre e taciturna.
Começam aqui as críticas de Kazan (ou da escritora Laura Hobson) aos grupos americanos pseudoliberais. A repentina mudança de atitude dos jornalistas outrora entusiasmados com a chegada de Phil demonstra perfeitamente o fingimento exercido por todas estas figuras. Um óptimo caso para ilustrar a hipocrisia que afecta esta sociedade aparentemente “ultra-civilizada”.
No que diz respeito ao conformismo, creio que esse problema é personificado através da personagem Kathy. Os contínuos pedidos de desistência a Philip, a constante imobilidade diante situações-problema e a passividade perante comportamentos intolerantes que esta personagem experiencia no decorrer do enredo, conjugam-se na personagem-tipo pretendida com esta protagonista feminina. O típico conformista.
Passando agora à análise do título, acho que a podíamos dividir em duas vertentes: O original e o traduzido.
Ao contrário de “Gentleman’s Agreement” (acordo entre cavalheiros), “A luz é para todos” é um título facilmente inteligível e perfeitamente adequado. A ideia da “luz ser para todos” metaforiza a igualdade a que todos temos direito enquanto seres humanos. Uma abolição de culturas ou de fronteiras no que diz respeito à distribuição de direitos. Não obstante, no que diz respeito ao título original; ou fui eu que não percebi muito bem ou o título não se adequa tanto. O único “acordo de cavalheiros” a que se assiste no filme (creio) é realizado entre o protagonista e o seu editor, quando Philip se compromete a fingir ser Judeu. Podemos também interpretar este título como um acordo realizado entre o jornalista e a sua
própria consciência de que não iria desistir desta luta pelos direitos dos Semitas, ou um acordo tácito realizado entre os membros da sociedade americana, comprometendo-se a não falar sobre o assunto. Esta interpretação é, contudo, algo rebuscada para o meu gosto. Todavia, posso sempre estar errado e não ter percebido o título.
Enquanto filme, Gentleman’s Agreement é irrepreensível. Toda a direcção e escolha de actores, selecção de cenários, diálogos e cenas não têm qualquer erro a apontar. Kazan mostrou-se ser um realizador digno da fama que tem e Gregory Peck não teve problemas em fazer jus à importância do seu personagem. Aliás, a palavra-chave é mesmo essa. Importância. “A luz é para todos “ não foi um filme feito para ser belo, para ser louvado como uma obra-prima do cinema americano nem para se destacar como um clássico. É simplesmente um filme necessário cuja importância jaz no efeito que esta mensagem tem no espectador.

Nota Final: 5/5

Q

sábado, 13 de março de 2010

Bach na Gulbenkian

Johann Sebastian Bach (1685-1750)

Depois dum majestosamente descalibrado Schiff e dum entusiasticamente virtuoso Yoyo-Ma, o auditório da Gulbenkian foi palco duma sucessão tripla dedicada à música antiga, mais especificamente a Bach. Desta forma, o ensemble Café Zimmermann tocou, em dois dias, 7 e 11 de Março, o integral dos concertos brandeburgueses (1-6) e dois concertos do mesmo compositor: Concerto para Cravo em Fá menor e Concerto para dois Violinos em Ré menor. Andreas Staier, por outro lado, tocou as 32 Variações Goldberg, BWV 988, no cravo, a 9 de Março.

Andreas Staier

Principiando pela exibição solista, creio ser pertinente introduzir um pequeno parêntesis sobre a peça em questão:
- Aquando da sua estadia em Leipzig, por volta de 1741, Bach, por encomenda dum Conde que sofria de insónias, compôs um conjunto de 30 variações (e uma ária repetida no início e fim da peça, servindo de base para todo o resto), com o intuito de o entreter nessas noites em claro. Como o conde tinha o seu próprio cravista, um jovem de 14 anos chamado Goldberg, Bach achou por bem atribuir o seu nome à peça que lhe era dirigida, nascendo, então, as Variações Goldberg, homónimas do seu primeiro e original intérprete.
Actualmente as variações Goldberg são tocadas também no piano, sendo Glenn Gould o intérprete que as consagrou neste instrumento, fazendo-o em 1955 para a Columbia Records, numa gravação que lhe impulsionou a carreira e repetindo a graça em 1981 para a Sony, com uma interpretação quase duas vezes mais lenta. Recomendo vivamente a segunda de Gould e a de Schiff (Decca Originals) a qualquer apreciador de Bach.



Findada esta breve introdução, falar-vos-ei agora do concerto que me comprometi a comentar. Habituado ao piano, nunca tinha ouvido uma rendição integral desta peça no cravo, tendo ido para o auditório com expectativas divididas quanto a esta peça: Por um lado, prefiro Bach tocado no piano que no cravo; por outro, as Variações Goldberg são provavelmente a minha peça preferida de Bach para um instrumento de teclas…
Independentemente das minhas ânsias, o concerto começou e Staier definiu na ária imediatamente o tempo que iria demarcar o resto das variações. Marcando algo não tão lento como a segunda gravação de Gould mas não tão rápido como a primeira, Andreas presenteou-nos com um meio-termo agradável e equilibrado, ao mesmo tempo que pessoal e expressivo. Toda a peça foi fluindo com naturalidade, não divergindo muito da sua versão no piano, até à 8ª variação, onde começou a principal disparidade entre a versão cravística e a do seu sucessor evolutivo. Aqui o intérprete passou a tocar a peça em dois teclados (verticalmente sobrepostos) dando uma dinâmica às variações impossível de atingir com o piano. É também de notar alguns efeitos que nunca tinha ouvido serem feitos (ainda não sei como) com o segundo teclado, tornando esta peça ainda mais polifónica do que já era.
É também de notar (apesar de com alguma infelicidade) o comportamento lastimável da plateia da Gulbenkian, que parece não se curar. As constantes tossidelas entre os andamentos (e não nos apogeus sonoros, como é recomendado) têm um efeito ainda mais notório na presença de solistas, o que até levou Andreas Staier, demonstrando um sentido humor cáustico, a tirar um rebuçado para a tosse do bolso a meio do concerto e ingeri-lo perante todos os seus assistentes.

Café Zimmermann

Passando agora para os dias 7 e 11, farei também, à semelhança do parágrafo anterior, uma pequena introdução concernente às peças em questão, e, desta vez, também aos seus intérpretes.
Formado em 1998 por Pablo Valetti (violinista) e Céline Frisch (cravista), o ensemble Café Zimmermann é uma formação orquestral cuja quantidade de músicos varia entre os 6 e os 25. Dedicado especialmente à música antiga, este grupo foi buscar o seu nome ao Café de Gottfried Zimmermann, situado na Rua de Santa Catarina, em Leipzig, que no século XVIII acolhia concertos semanais do Collegium Musicum, um grupo fundando por Telemann e dirigido por Bach entre 1729 e 1739.
260 após a morte de Bach, o ensemble Café Zimmermann realizou esta sessão dupla no auditório da Gulbenkian tocando integralmente os concertos de Brandeburgo. Concluídos em 1721, estes 6 concertos foram criados com o intuito de agradar ao príncipe Christian Ludwig, margrave de Brandeburgo – um douto coleccionador de música.
Provavelmente as obras concertantes mais famosas de Bach, os concertos Brandeburgueses requerem uma interpretação digna da magnitude da peça em questão, o que obriga os executantes a tocar com uma maviosidade pertinaz.
Felizmente, foi exactamente isso que o ensemble Café Zimmermann fez desde o princípio do primeiro concerto a ser tocado (nº4), logo no dia 7. Pablo Valetti e todos os outros músicos atribuíram a esta peça a tessitura adequada à execução de peças barrocas, e diga-se também que o uso de instrumentos antigos (viola de gamba e violone) só veio enaltecer a óptima prestação do grupo. Sobre o concerto de cravo em fá menor, que sucedeu a primeira peça, parece-me adequado dizer ter sido o ponto alto da noite. A cravista Céline Frisch garantiu que o seu papel na orquestra não passava ao lado dos olhos dos espectadores, que, no fim da peça, a aplaudiram correspondentemente.
Seguiram-se os concertos nº6 e nº2 que, à semelhança dos outros, passaram sem qualquer erro a apontar.
Passando agora para o dia 11, é com infelicidade que afirmo que os músicos não mantiveram sempre ao nível a que nos acostumaram dia 7. O inovador concerto nº5 foi iniciado sem qualquer tipo de animosidade e os músicos tornaram a primeira parte da peça algo inexpressivo e até mesmo fraco. Contudo, após o virtuoso capriccio do cravo protagonizado novamente por Frisch, a orquestra ganhou um novo estro, o que compensou a falha inicial. A segunda peça, concerto para dois violinos em Ré menor, solada por Valetti e Plantier, esteve ao nível do que assistimos no primeiro dia, indo os justos aplausos desta vez para os violinistas. Seguiu-se aquele que é talvez o mais famoso concerto Brandeburguês – o terceiro – que foi executado com a vivacidade que o caracteriza e lhe é necessária. No mesmo concerto, o contraste entre o segundo andamento (um adágio que tem apenas dois acordes – o mais curto da literatura musical) foi cuidadosamente demarcado do resto da peça, mas ao mesmo tempo bem inserido, o que retira à peça a estranheza que por vezes os músicos erradamente lhe conferem.
Finalmente, o ensemble Café Zimmermann tocou o concerto nº 1 – o mais elaborado dos seis. Todas as 7 partes deste concerto (o quarto andamento está dividido em 4 partes) foram alternadas com a riqueza tímbrica e tonal obrigatórias a uma boa execução, o que fez com que os Zimmermann fechassem esta série barroca em grande.

Nota final : 4.5/5

Q
 
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