domingo, 18 de julho de 2010

Pequena excursão pelo cinema Psiquiatrico

Adepto desta enigmática ciência, é com extremo interesse e ânimo que vejo filmes cujo tema central é a Psiquiatria.
Como tal, falar-vos-ei dos últimos filmes que vi sobre esta temática e deixarei algumas recomendações para interessados no assunto.

Spellbound (1945), de Alfred Hitchcock - Protagonizado pelo robusto icone desta geração - Gregory Peck - e pela bonita e adorável Ingrid Bergman, Spellbound é uma incursão Freudiana duma psiquiatra recém-formada ao subconsciente dum esquizofrénico amnésico, feita com o intuito de provar a sua inocência face a uma acusação de homicídio.

Com algumas cenas oníricas desenhadas pelo próprio Salvador Dali, Spellbound é quase inqualificável em termos de género, dada a mescla de acontecimentos que compõem este elaborado e astuto enredo. De Film Noir, a drama psicológico, a policial, tudo é insuficiente para categorizar esta obra-prima. Só resta mesmo uma palavra: Spellbinding.
(5/5)


Spider (2002), de David Cronenberg
- Londres, anos 80. "Spider", um esquizofrénico paranóide, chega a uma instituição psiquiátrica onde começa, sozinho, a viajar mentalmente até à sua infância, 20 anos atrás.


Nessas suas deambulações assiste aos acontecimentos que levaram ao seu estado presente, nomeadamente, à morte da sua mãe. Serão, porém, estas percepções claras e verdadeiramente ilustrativas da realidade? Spider é uma brilhante película tecida por Cronenberg e magistralmente protagonizada por Ralph Fiennes que acaba por ser um dos melhores trabalhos de ambos estes grandes senhores do cinema actual. Imperdível
(5/5)


K-PAX (2001), de Ian Softley
- A dupla Kevin Spacey e Jeff Bridges (que se encontram 7 anos depois em "The Men Who Stare at Goats") aparece aqui como paciente e terapeuta, respectivamente. Spacey afirma ser "Prot", um extra-terrestre do Planeta K-PAX, mundo em que há paz, dois sóis, auto-regeneração e teletransporte.


Inicialmente ridicularizado, Prot começa a causar sucesso no hospital à medida que vai reabilitando pacientes supostamente incuráveis, a discursar eloquentemente sobre grandes teorias teológicas e físicas e apresentar novos factos à ciência terrestre. A sua tese é tão convincente que o próprio psiquiatra chega a pôr a hipótese de ser realmente verídica...Não é nenhuma obra-prima, mas ainda assim recomenda-se vivamente.
(4.5/5)

Gaslight (1944), de George Cukor
- Um ano antes de contracenar com Peck e trabalhar com Hitchcock em Spellbound, Ingrid Bergman já se tinha deparado com outro grande mestre do cinema Noir dos anos 40: George Cukor. Felizmente para a sua versatilidade enquanto actriz, desta vez apareceu como doente e não como doutora.


Gregory Anton (Charles Boyer), aparenta ser o marido perfeito. Atencioso, presente, preocupado...extremamente preocupado...sinistramente preocupado...propositadamente preocupado? Um excelente drama psicológico e uma perfeita ilustração dos poderes da sugestão psicológica e do processo de enlouquecimento. Genial e perturbador.
(5/5)

Shutter Island (2010), de Martin Scorsese , com Leonardo Dicaprio, Mark Ruffalo, Ben Kingsley e Max Von Sydow - Como amante de cinema, alimento uma fantasia de qualquer dia vir a realizar eu próprio um filme e, sempre que me imagino a fazê-lo, é um thriller psicológico deste género. Acredito, portanto, que realizadores conceituados como Scorsese e Kubrick cheguem a uma certa altura das suas esplendorosas carreiras e ponham a hipótese de fazer algo totalmente dedicado ao seu virtuosismo técnico, onde possam criar um ambiente apenas possível na tela. Mencionei Kubrick e não foi por acaso. Acho que este filme está para o Scorsese como está o Shining para o Kubrick e, inclusive, ao mesmo nível, senão melhor.


Brilhante, mesmo! (Não incluo nesta recomendação uma sinopse porque simplesmente é impossível fazê-lo sem estragar surpresas do mais agradável que há no cinema). Shutter Island triunfa tanto na história como no som, na imagem e nas actuações. Outra obra-prima de imperioso visionamento.
(5/5)

Lilith (1964), de Robert Rossen - Last, but not least, eis um filme de que se ouve pouco falar. Protagonizado pela pecaminosamente bela Jean Seberg, Lilith (vejam a origem do nome na Wiki) é a história duma ninfomaníaca que tem um poder incomum (embora perfeitamente compreensível) sobre todos os homens que a rodeiam. Vincent (Warren Beaty), um ex-combatente que ingressa agora no hospital para trabalhar como enfermeiro e acompanhante é a sua nova presa...


Lilith é um filme que, independentemente de toda a obscuridade que o envolve, só deixa transparecer beleza. Beleza encarnada na filmagem, na história, e na assustadoramente encantadora Lilith. De todos estes o melhor e o meu preferido.
(6/5)



Lilith


Recomenda-se ainda, dentro desta temática (alguns de forma mais indirecta):

One Flew Over the Cuckoo's Nest (1975), de Milos Foreman; (5/5)

A Double Life (1947) - de George Cukor (5/5)

The Silence of The Lambs (1991), de Jonathan Demme
(5/5) - Apesar do resto da sequela (Hannibal - 2001) ser desprezível. Até perdi a vontade de ver o terceiro.

Persona, de Ingmar Bergman (5/5) - Uma obra prima absoluta.

The Shining (1980), de Stanley Kubrick (5/5)

A Clockwork Orange (1971), de Stanley Kubrick (5/5)

Moon (2009), de Duncan Jones (5/5)

Crash (1996), de David Cronenberg (4/5)


Annie Hall (1977), de Woody Allen (4/5)


Barton Fink (1991), dos Irmãos Coen (4.5/5)


Recordações da Casa Amarela (1989) (5/5), A Comédia de Deus (1995) (5/5) e já agora o último da triologia (este ainda não vi) As Bodas de Deus (1999), de João César Monteiro.

Se7en (1995), de David Fincher (4/5)

Fight Club (1999), de David Fincher (4.5/5)

Mulholland Drive (2001), de David Lynch (5/5)

American Psycho, de Marry Harron (4.5/5)


Para além de todos estes filmes sugiro que dêem uma olhadela ao programa de cinema da Gulbenkian sobre doenças mentais. Alguns deles já mencionei, outros ainda não vi, mas vou certamente fazê-lo. Eis a lista completa:

26 Maio Das Cabinet des Dr. Caligari de Robert Wiene

9 Junho Spellbound de Alfred Hitchcock

16 Junho The Snake Pit de Anatole Litvak

23 Junho Les Yeux sans Visage de Georges Franju

30 Junho Peeping Tom de Michael Powell

7 Julho Vivre sa Vie de Jean-Luc Godard

14 Julho Shock Corridor de Samuel Fuller

21 Julho Lillith de Robert Rossen

28 Julho Persona de Ingmar Bergman

4 Agosto Jaime de António Reis e Titticut Follies de Frederick Wiseman

11 Agosto Zabriskie Point, de Michelangelo Antonioni

18 Agosto One Flew over the Cuckoo’s Nest, de Milos Forman

25 Agosto Elephant ,de Gus Van Sant


Q

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Crash (1996), de David Cronenberg

Sou da opinião de que o bom crítico é aquele que avalia quantitativamente o seu objecto de uma forma totalmente imparcial, desprezando a experiência subjectiva (dentro do que é possível) e regendo-se apenas por um olhar objectivo; mas que uma boa crítica não se pode limitar aos números, sendo estes inúteis a partir da sua óbvia utilidade. Uma boa crítica deve conter um auxiliar textual onde o crítico possa explicar a avaliação numérica, contar algo de novo aos seus leitores, fazer recomendações e, acima de tudo, falar da sua experiência subjectiva tão abertamente ao ponto de esta deixar de comprometer o seu juízo crítico.
Apenas guiando-me por estas regras algo desregradas posso falar de filmes que violentam os sentidos e chocam o espírito, não deixando de, no entanto, regalar o olho e o intelecto fascinado. Eis "Crash".


Baseado no romance homónimo de 1973 de J.G.Ballard e realizado em 1996 pelo canadiano David Cronenberg, um dos maiores nomes da Horror-Sci-fi da história do cinema, criador de chocantes thrillers como Stereo(69), Scanners(80), The Fly (86), Dead Ringers (88), M.Butterfly(93) e mais recentemente eXistenZ (99), Spider (02) e A History of Violence (05), Crash, não menos gore que o resto dos seus filmes (nem que seja um gore psicológico), conta-nos a história de um grupo de indivíduos que apenas consegue obter prazer sexual ao observar ou experimentar acidentes de automóvel.

Protagonizado por James Spader (o hilariante Alan Shore da série Boston Legal) e secundado por Holy Hunter, Elias Koteas, Deborah Kara Unger e Rosanna Arquette, este filme, muito pobre no que diz respeito ao enredo, podia ser traduzido em pornografia para parafílicos, neste caso, para pessoas com os mesmos desvios sexuais que aqueles que nele entram. Mas será que Cronenberg quer saber do enredo para alguma coisa? Não.
Aquilo que o realizador tenta fazer não é contar uma história interessante sobre pessoas com esta ou aquela demência. É fazer-nos sentir aquela obsessão e guiar-nos por um mundo totalmente novo. Um mundo possível ainda que inverosímil em que o Eros e o Tanatos freudianos se misturam e atingem um cúmulo aparentemente irreal para o homem são; para o homem comum; normal.
A mestria técnica do realizador, a possante e hipnótica banda sonora e a entrega total dos actores nesta obra de arte do submundo criam no espectador uma sensação de desconforto constante a par duma curiosidade pungente. Não sabemos como reagir perante um erotismo tão familiar ao mesmo tempo que distante, chocante e até mesmo devasso. Cronenberg cria em nós uma mescla de sensações que insere este filme exactamente na classe daqueles a que me referia na introdução deste post. Filmes que embora não possamos realmente "gostar", podemos e devemos sempre admirar.
Crash é um brilhante estudo socio-psicológico que apenas peca pelo excessivo arrastamento de algumas cenas e repetição de outras. Chega a uma altura em que o nosso desconforto não se deve apenas ao conteúdo do filme mas também ao fastidio provocado pelo mau enredo.

Vaughan (Elias Koteas): "The car crash is a fertilizing rather than a destructive event."

Nota Final: 4/5

Q

quinta-feira, 25 de março de 2010

Smultronstallet




Na sequência do Post anterior, decidi fazer o mesmo para o meu último trabalho: Morangos Silvestres, do Ingmar Bergman.

Ficha Técnica:

Realização: Ingmar Bergman
Guião: Ingmar Bergman
Cinematografia: Gunnar Fisher
Elenco: Victor Sjöström (Dr Isak Borg); Bibi Andersson (Sara) ; Ingrid Thulin (Marriane Borg); Gunnar Björnstrand (Evald Borg); Jullan Kindahl (Agda); Folke Sundquist (Anders); Björn Bjelfvenstam (Viktor); Max Von Sydow (Henrik Åkerman)
Ano de lançamento: 1957
País de Origem: Suécia
Cor: Preto e Branco
Idioma: Sueco
Duração: 91 minutos


Resumo:
Quando Isak Borg (Sjöström), um viúvo, solitário e envelhecido médico atinge o 50º ano desde o início do seu mester, é feita uma celebração em sua honra, em Lund. Marriane (Ingrid Thulin), sua nora, ao saber que Isak vai de carro, decide acompanhá-lo.
Durante a viagem, Marriane não cessa de criticar a conduta do seu sogro. Desde repreensões concernentes ao seu egoísmo e narcisismo a julgamentos quanto á sua insensibilidade e pedantismo, Isak não é poupado.
À medida que a viagem avança, Isak e Marriane começam intimar-se um pouco mais, expandindo a sua relação de sogro-nora a algo mais caloroso. O médico tenta confidenciar-lhe preocupações que o atormentam e decide mostrar a Marriane a casa de férias da sua infância, fazendo um pequeno desvio na rota original.
A partir desta parte a temporalidade do filme divide-se em 3: As memórias de Isak, o presente e a sua consciência.
A sua primeira memória remonta ao tempo em que Isak era jovem e nutria uma paixoneta pela sua prima Sara (Bibi Andersson), com quem estava secretamente enlaçado. Invisível para os figurantes dos seus devaneios, Isak assiste à festa de anos do seu tio Aron (Yngve Nordwall), especialmente aos descuidos infiéis de Sara com o seu irmão [de Isak], Sigfrid (Per Sjöstrand).
De repente, uma voz estranha acorda-o do seu universo interior. Sara (também interpretada por Bibi Andersson), uma rapariga em muito semelhante ao seu primeiro amor (não só no nome), juntamente com dois rapazes - Viktor (Björn Bjelfvenstam) e Anders (Folke Sundquist), pedem boleia até Lund.
A viagem está animada e os Borg estão entusiasmados com a folia dos jovens. Porém, num acto altruísta, Isak oferece boleia a um casal que acabara de sofrer um despiste e uma consequente capotagem. Irascíveis e irritantes, os conjugues Alman (Gunnel Broström e Gunnar Sjöberg) começam a discutir e a bater-se perante os outros viajantes, importunando-os. Marriane, incomodada, expulsa-os do carro e a viagem continua.
Depois de um agradecimento sincero de Herik Akerman (Max Von Sydow), um gasolineiro por quem o Dr. Isak Borg fez muito, e de um vigoroso almoço filosófico, Isak decide visitar a sua mãe, algo que não fazia havia muito.
Aqui o filme volta a passar para outro plano, desta vez o da mente de Isak, que adormece. Depois do primeiro sonho (passado no início do filme mas mencionado apenas agora por motivos de estruturação desta sinopse alargada), em que Isak se vê sozinho numa ruela deserta e desconhecida, totalmente perdido e desorientado, até que aparece uma carroça arrastando um caixão com ele próprio lá metido; o protagonista tem um segundo sonho; este ainda mais perturbador:
O sonho começa com Isak a contemplar, aterrorizadamente, Sara e o seu irmão Sigfrid, já adultos, juntos e felizes. A sua amada diz-lhe que tem de a esquecer e perdoar, deixando os
fantasmas do passado para trás. Subitamente, o ambiente que o circunda muda e encontra-se numa sala de aulas universitária, prestes a fazer um exame, levado a cabo pelo supra mencionado Mr. Alman – um dos conflituosos conjugues. Este exame é feito à sua capacidade de se avaliar a si próprio psiquicamente (metaforizado através de exames médicos a outros pacientes, que Isak faz erroneamente). A conclusão é a de que é incapaz de o fazer. – É inconsciente, tendo, portanto, chumbado. O examinador diz-lhe então que é, entre outras coisas, amotivo, indiferente e egoísta. Citando um excerto da acusação: “Mr Borg é culpado de ter culpa”. Este exame pode também ser interpretado como um “teste” à personalidade de Borg, mas analisaremos isso mais à frente, noutra secção deste trabalho.
Mais tarde o examinador leva-o a assistir à cena que talvez tenha mais marcado toda a sua vida. A infidelidade da sua mulher Karin. Assistimos também a Karin tecer uma panóplia de vitupérios dirigidos ao seu marido, acusando-o de frieza, cinismo e hipocrisia, dando especial ênfase à sua incapacidade de perdoar.
Voltando à realidade, assistimos agora ao paroxismo de intimidade confidencial entre Marriane e Isak.
Primeiro, a nora aceita ouvir os sonhos do sogro (algo que tinha recusado anteriormente). Segundo, Marriane conta-lhe o seu maior segredo: Que esteve grávida e que Evald (Gunnar Björnstrand), o seu marido (um afirmado niilista existencial), a obrigou a abortar, sob o pretexto de que trazer uma criança ao mundo só ia dar mais sofrimento a ele e ao bebé. Marriane, contudo, está ainda grávida, e acompanhou Isak até Lund para dizer ao seu marido que rejeita as suas condições.
Finalmente chegam a Lund e a cerimónia corre como era esperado. É noite de festa mas Isak, dados os seus setenta e cinco anos, tem de se deitar cedo. Despede-se ternamente de Sara e dos seus acompanhantes, perdoa a dívida do filho, libertando-se da fama de avarento e medita sobre tudo o que se passara naquele dia. Fecha os olhos, volta ao seu mundo fantástico onde encontra a meiga Sara que lhe diz: “Isak, meu querido, já não há mais morangos silvestres”. Sorri. Abre os olhos. Morre.

Análise Crítica

Nesta análise crítica pretende-se focar o filme sob três pontos de vista diferentes:
- Tecer especulações quanto às oscilações gnósticas do realizador, dando principal ênfase às suas crenças, convicções e dúvidas respeitantes a assuntos de cariz esotérico e existencial, através duma análise sintética aos filmes “O Sétimo Selo”, “A Fonte da Virgem” e, mais detalhadamente, “Morangos Silvestres”, dado o seu intimo entrelaçamento temático.
- Interpretar o filme “Morangos Silvestres” dum ponto de vista psicológico, filosófico e explicativo.
- Criticar os aspectos técnicos do filme, ao nível da realização e actuação

Bengt Ekerot (esquerda) e Max Von Sydow (direita) em “O Sétimo Selo”

Cingindo-me aos filmes que vi de Bergman, a primeira questão metafísica que vi o realizador colocar é posta em “O Sétimo Selo”, metaforizada através do jogo de xadrez mais famoso da história do cinema entre Antonius Block (Max Von Sydow, um dos actores fetiche de Bergman, protagonista da Fonte da Virgem e secundário n ‘ Os Morangos Silvestres) e a Morte (Bengt Ekerot). Reduzindo muito aquilo de que o filme trata, a conclusão de Bergman é simples: Independentemente daquilo em que creiamos, do que façamos ou tentemos fazer, a Morte é inevitável. Mais vale conformarmo-nos e aceitar o que nos está predestinado do que suar as estopinhas a tentar combater esse facto. Partindo desta conclusão, Bergman, outrora dúbio quanto à inevitabilidade da morte, pergunta-se “Se vou morrer, como posso fazê-lo feliz, dando sentido à minha vida?” Ou, por outras palavras, “Qual é o verdadeiro sentido da vida?”. Para responder a esta questão analisaremos todo o trajecto de Isak, tanto no seu universo interior como no mundo físico que o envolve, na sua viagem de Estocolmo para Lund.
Logo no princípio do filme, Isak Borg começa por se descrever a si próprio como alguém adverso a relações sociais, o que o fez distanciar-se de qualquer contacto interpessoal, cingindo-se a pouco mais que si próprio. Isak considera-se, portanto, voluntariamente solitário. Assistimos depois a uma parafernália de críticas feitas pela sua nora Marrianne, que, como já vimos, o acusa de egoísmo, avareza, hipocrisia e dogmatismo. Inconsciente de ser tais coisas, o médico interroga-se: “Terá ela razão?”. Apercebendo-se da proximidade do seu fim (vaticinado através de sonhos fatídicos) e ponderando algumas das críticas da sua nora, Isak decide que é necessário redimir-se; Encetar uma odisseia interior com o propósito de apanhar todos os “Morangos Silvestres” da sua consciência, caso contrário não morrerá descansado.
Qual é, então, o primeiro passo a tomar nesta demanda pela redenção? – Sara. Durante toda a sua vida Isak esteve rancoroso para com ela e o seu irmão Sigfrid. Não estará na altura de esquecer… aceitar… perdoar? Isak revê esse triângulo amoroso na amistosa Sara e os seus dois pretendentes – Viktor e Anders, substitutos dos vértices originais Sigfrid e Isak.
Estando a consciencialização do primeiro passo concluída, por onde enveredar de seguida? Não é preciso procurar muito. A instável e conflituosa relação do casal Alman traz-lhe à memória a sua relação com Karin – a sua justificadamente infiel ex-mulher.
Seguidamente, ao fazer uma terceira paragem para visitar a sua envelhecida mãe, Isak redime-se da falta de contacto que havia mantido com ela, e dá outro passo na sua aceitação do casamento Sigfrid-Sara, ao pedir à mãe para lhe dar uma fotografia dele com o irmão.
A grande reviravolta psicológica e emocional de Borg dá-se no seu segundo sonho, pormenorizadamente relatado no resumo acima.
É por esta altura que Isak se começa a aperceber que não foi ele quem se afastou voluntariamente do resto das pessoas, mas o oposto. A aversão era recíproca. Karin traiu-o pela sua frieza, indiferença e hipocrisia, sendo ele o principal culpado pelo desenlace trágico da sua atribulada relação. Sara era jovem e não tinha qualquer tipo de vínculo bem definido com Isak, o que torna inadmissível todo o seu ressentimento e incapacidade de perdão.
Resumindo utilizando citações do filme, Isak falhou no cumprimento da primeira máxima dum médico: “ O principal dever de um médico é pedir perdão”.
Sobre este sonho pode dizer-se ainda um pouco mais, no domínio das interpretações pessoais e subjectivas. Mr Alman, o examinador, pode ser visto, dum ponto de vista católico, como S.Pedro, guardião das portas do céu, que procedia a uma averiguação da idoneidade de Isak para transpor ou não a porta que este guarda. Por outro lado, o examinador pode ser visto como o Super-Ego de Borg, que tenta corrigir os desvios da conduta do protagonista quanto ao caminho necessário a morrer em paz.
À medida que o filme avança, as convicções de Isak quanto ao sentido da vida vão-se transformando. Inicialmente partilhante das ideias do seu filho, de que a vida em si é desprovida de sentido e de que apenas a devemos viver por viver, desfazendo-nos de qualquer tipo de dependências que nos obriguem a vivê-la mesmo quando já não o quisermos (admitindo uma espécie de Niilismo existencial), Isak percebe que a vida deve ter como objectivo o alcançar de uma serenidade interior, um estado mental livre de remorsos e
rancores mas repleto de boas e louváveis memórias. Que o verdadeiro sentido da vida é o de um homem poder chegar ao último dia da sua vida consciente de que ajudou os outros, de que era querido pelos que lhe são próximos (os sinceros agradecimentos do gasolineiro e os amáveis elogios e amistosas declarações da jovem Sara - “Pai Isak, fica sabendo que é a ti que te amo. Hoje, amanhã e para sempre”, bem como o evoluir da sua relação com Marriane; não esquecendo a sua enternecedora relação com Agda, sua empregada, fizeram-no compreender o que era realmente essencial e chegar a esta conclusão), de que é internacionalmente respeitado, de que fez, no fundo, coisas boas, libertando-se das más.
Findando o seu percurso de renovação espiritual ao soltar-se da fama de avarento, perdoando a dívida de Evald, Isak atinge o estado que ambicionara, podendo, finalmente, morrer em paz.
Outro problema presente neste filme é o da existência de Deus, mais tarde abordado pelo realizador em “A fonte da Virgem”.
Através dos personagens Viktor e Anders, Bergman personifica as suas próprias dúvidas quanto a este tópico. A sua inclinação é, contudo, óbvia. Através da posição de Isak e de todo o providencialismo inerente a esta película, o realizador demarca a sua própria opinião. Para além de todas as alusões a Cristo e à religião católica (no seu sonho, Isak fura a mão com um prego, no caminho para a redenção), todas as coincidências ocorridas durante a viagem (aparecimento de uma rapariga idêntica a Sara num caso idêntico ao seu e do seu irmão, de um casal semelhante a Karin e a ele próprio) criam um paralelismo demasiado intimo para ser apenas coincidência, entre a sua viagem espiritual e física [de Estocolmo para Lund]. Essa excessiva intimidade sugere que terá havido uma intervenção divina em todo este dia, como se Deus os tivesse enviado propositadamente para ajudar Isak no seu caminho.
Três anos mais tarde, Bergman volta a este problema na “Fonte da Virgem”, onde se questiona se fará sentido acreditar em Deus quando, mesmo levando uma vida virtuosa e dedicada a Ele, as piores coisas possíveis acontecem. Volta, contudo, a reafirmar a sua posição gnóstica no final do filme, numa deslumbrante cena em que Deus se manifesta milagrosamente perante os protagonistas.

“A Fonte da Virgem”

“Morangos Silvestres”, contudo, não se limita a expor questões filosóficas e psicológicas de forma nua e crua. Há uma componente extremamente heartwarming, até mesmo tocante, do princípio ao fim. Desde a evolução enternecedora da relação entre Isak e a sua nora às discussões amorosas e afáveis entre Dr. Borg e Mrs. Agda, o filme caracteriza-se por uma ternura capaz de sensibilizar o mais frio dos espectadores.
Provavelmente no papel da sua vida (que por acaso foi o último), o actor e realizador sueco Victor Sjöström faz uma das interpretações mais brilhantes e comoventes de toda a história do cinema universal (mais uma vez, cinjo-me ao que vi – apesar das críticas mais exigentes concordarem). A para mim até então desconhecida, embora lindíssima Ingrid Thulin mostra como se pode demonstrar frieza, dramatismo e brandura sem o mínimo de over ou
underacting, no mesmo filme. Gunnar Björnstrand, este já mais característico do espólio habitual de Bergman, faz justiça à predilecção do realizador, demonstrando-se genial.
Quanto aquela que é provavelmente a minha actriz preferida, Bibi Andersson, pouco tenho a dizer. Apesar de lhe lamentar o talvez excessivo dramatismo na encarnação da Sara das memórias de Borg, o seu entusiástico e caloroso papel ao representar a Sara “moderna” redime qualquer erro que possa ter cometido e justifica, desta vez, a minha idiopatia.
Passando para o campo da realização e componente estética do filme, digo apenas que me sinto quase ridículo a tecer julgamentos sobre um dos cineastas mais geniais de todos os tempos. Todo o filme é um exemplo perfeito de mestria técnica e dirigista, e nem a ausência do habitual cinematógrafo Sven Nykvist (substituído com excelência por Gunnar Fisher) tira a perfeição a esta obra-prima.
Provavelmente um dos melhores filmes de Bergman e de sempre.

Nota final: 5/5

Q

Gentleman's Agreement



Este Post tem como base um trabalho feito para a minha escola, na disciplina de Filosofia e Cinema, pelo que tem, portanto, um formato diferente daquilo que costumo fazer aqui.

Ficha Técnica:

Gentleman’s Agreement
A luz é para todos
Direcção: Elia Kazan
Guião: Moss Hart (Baseado no romance de Laura Z. Hobson)
Elenco: Gregory Peck (Philip Green); Dorothy McGuire (Kathy Lacey); John Garfield (Dave Goldman); Celeste Holm (Anne Dettrey); Anne Revere ( Mrs Green); June Havoc (Elaine Wales); Albert Dekker (John Minify)
Ano de lançamento: 1947
País de Origem: Estados Unidos da América
Cor: Preto e Branco
Idioma : Inglês
Duração: 118 minutos

Resumo:

Viúvo e recém-chegado a Nova Iorque, o jornalista Philip Green (Gregory Peck) é requisitado pelo seu editor para escrever um artigo sobre Anti-semitismo. Inicialmente, Philip carece de ideias para a realização deste projecto, mas depressa percebe que ao fingir ser Judeu poderá escrever um artigo mais preciso e original, visto que seria vítima deste tipo de discriminação duma forma mais directa. O seu editor acha a ideia interessante e Philip é introduzido na sociedade Nova-Iorquina sob o véu do judaísmo.
Certo dia, durante uma festa, Philip é apresentado a Kathy Lacey (Dorothy McGuire), a quem, descaindo-se, revela a sua verdadeira identidade. Pouco tempo depois iniciam uma relação amorosa, onde se centrará grande parte da história.
É então que Philip, totalmente anti-intolerância, começa a descobrir que a revista para a qual trabalha, cuja fama é de ser liberal, é mais preconceituosa do que o que aparenta ser: Descobre que a sua secretária (June Havoc) é judia mas que, tendo tido a sua candidatura rejeitada aquando da sua primeira tentativa de obter emprego pelo facto do “lugar já estar preenchido”, volta a concorrer sob o pseudónimo de Elaine Wales, um nome americano, obtendo imediatamente o lugar. Em adição a isto, (numa cena memorável, comentada mais adiante neste trabalho) durante um almoço entre vários jornalistas ditos liberais, Philip sente-se discriminado pelo facto de “ser” judeu.
Por esta altura aparece em Nova Iorque Dave Goldman (John Garfield), um amigo de infância de Philip que é realmente judeu. Apesar de estar satisfeito com o trabalho do seu companheiro, Dave aconselha-o a ter cuidado. A revolta contra a intolerância pode ser perigosa.
Com o avançar da história o jornalista torna-se alvo de inúmeros casos de discriminação. Cancelamento de consultas médicas e impedimento de estadias em hotéis são alguns exemplos menores daquilo que vitimiza Philip. Contudo, o caso torna-se mais sério quando é o seu filho a ser vítima de injúrias desta índole. Os colegas, na escola, chamam-lhe “Porco Judeu” e, numa cena extremamente tocante, Tommy (Dean Stockwell) – o filho – queixa-se ao pai, embebido em lágrimas, por não perceber o porquê daquele tratamento.
Ao longo do tempo, Philip vai detectando em Kathy alguns sinais de anti-semitismo dissimulado que o transtornam. Cenas como a indisponibilidade de Kathy para ajudar Dave a combater a discriminação de que é alvo, as tentativas de reconforto a Tommy dizendo-lhe para não ficar chateado porque ele na realidade não era um “Porco Judeu”, que estava apenas a fingir; enfim, a inércia de Kathy perante a discriminação e todo o conformismo envolvente nas suas acções e atitudes fazem com que Phil cancele o casamento (estavam noivos) e acabe a relação. Revoltado, Phil decide abandonar Nova Iorque assim que o artigo seja publicado.
É publicado. É um sucesso.
Estava já Phil preparado para abandonar a cidade quando Kathy, depois duma longa conversa com Dave, se apercebe da estupidez dos seus actos e do quão horrível é, de facto, a intolerância. Pede desculpa a Phil e este aceita. Reconciliam-se e o filme acaba.

Análise Crítica


Após a leitura deste resumo ou a visualização deste filme, facilmente se percebe que o tema sobre o qual esta peça cinematográfica gira é a intolerância; mais concretamente o anti-semitismo. Por esta altura (finais da segunda Grande Guerra) os Estados Unidos eram um abrigo para muitos judeus, que, com medo da perseguição Nazi, decidiram exilar-se na “Terra das Oportunidades”. Percebe-se então a principal origem da grande afluência judaica para os Estados Unidos da América. Ora, como em todas as migrações, o choque cultural é algo inevitável, o que leva as mentes mais retrógradas a acabar por catalogar a cultura migrante como “invasora” e, por conseguinte, censurá-la e discriminá-la.
Porém, aquilo que para mim é mais curioso e atraente neste filme é o facto de não tratar do Anti-Semitismo radical, mas sim do dissimulado. Estamos já todos fartos e cientes do problema abordado em filmes sobre grupos Neo-Nazis ou racistas radicais. Está errado, não devemos fazer e devemos combater. Este filme não é nada disso. Os grandes problemas aqui tratados são algo de muito mais inconsciente, comum e actual: A hipocrisia social, o conformismo perante a discriminação e a indiferença que afecta uma grande maioria.
Apesar de já ter visto este filme há cerca de quatro meses, uma das cenas descritas acima (creio ter mencionado que lhe voltaria a pegar mais tarde – agora) continua visível na minha cabeça duma forma tão clara como da primeira vez que a vi. Absolutamente fascinante:
-Durante um almoço, Philip e o seu projecto sobre Anti-Semitismo são apresentados perante os membros da revista. Inicialmente recebido com copiosa cortesia, Phil senta-se e diz algo como “acho que este trabalho é importantíssimo, independentemente do meu próprio judaísmo”. Todos os convidados se calam, baixam os olhos e começam a comer. O silêncio pesa sobre a atmosfera da sala, que se torna lúgubre e taciturna.
Começam aqui as críticas de Kazan (ou da escritora Laura Hobson) aos grupos americanos pseudoliberais. A repentina mudança de atitude dos jornalistas outrora entusiasmados com a chegada de Phil demonstra perfeitamente o fingimento exercido por todas estas figuras. Um óptimo caso para ilustrar a hipocrisia que afecta esta sociedade aparentemente “ultra-civilizada”.
No que diz respeito ao conformismo, creio que esse problema é personificado através da personagem Kathy. Os contínuos pedidos de desistência a Philip, a constante imobilidade diante situações-problema e a passividade perante comportamentos intolerantes que esta personagem experiencia no decorrer do enredo, conjugam-se na personagem-tipo pretendida com esta protagonista feminina. O típico conformista.
Passando agora à análise do título, acho que a podíamos dividir em duas vertentes: O original e o traduzido.
Ao contrário de “Gentleman’s Agreement” (acordo entre cavalheiros), “A luz é para todos” é um título facilmente inteligível e perfeitamente adequado. A ideia da “luz ser para todos” metaforiza a igualdade a que todos temos direito enquanto seres humanos. Uma abolição de culturas ou de fronteiras no que diz respeito à distribuição de direitos. Não obstante, no que diz respeito ao título original; ou fui eu que não percebi muito bem ou o título não se adequa tanto. O único “acordo de cavalheiros” a que se assiste no filme (creio) é realizado entre o protagonista e o seu editor, quando Philip se compromete a fingir ser Judeu. Podemos também interpretar este título como um acordo realizado entre o jornalista e a sua
própria consciência de que não iria desistir desta luta pelos direitos dos Semitas, ou um acordo tácito realizado entre os membros da sociedade americana, comprometendo-se a não falar sobre o assunto. Esta interpretação é, contudo, algo rebuscada para o meu gosto. Todavia, posso sempre estar errado e não ter percebido o título.
Enquanto filme, Gentleman’s Agreement é irrepreensível. Toda a direcção e escolha de actores, selecção de cenários, diálogos e cenas não têm qualquer erro a apontar. Kazan mostrou-se ser um realizador digno da fama que tem e Gregory Peck não teve problemas em fazer jus à importância do seu personagem. Aliás, a palavra-chave é mesmo essa. Importância. “A luz é para todos “ não foi um filme feito para ser belo, para ser louvado como uma obra-prima do cinema americano nem para se destacar como um clássico. É simplesmente um filme necessário cuja importância jaz no efeito que esta mensagem tem no espectador.

Nota Final: 5/5

Q

sábado, 13 de março de 2010

Bach na Gulbenkian

Johann Sebastian Bach (1685-1750)

Depois dum majestosamente descalibrado Schiff e dum entusiasticamente virtuoso Yoyo-Ma, o auditório da Gulbenkian foi palco duma sucessão tripla dedicada à música antiga, mais especificamente a Bach. Desta forma, o ensemble Café Zimmermann tocou, em dois dias, 7 e 11 de Março, o integral dos concertos brandeburgueses (1-6) e dois concertos do mesmo compositor: Concerto para Cravo em Fá menor e Concerto para dois Violinos em Ré menor. Andreas Staier, por outro lado, tocou as 32 Variações Goldberg, BWV 988, no cravo, a 9 de Março.

Andreas Staier

Principiando pela exibição solista, creio ser pertinente introduzir um pequeno parêntesis sobre a peça em questão:
- Aquando da sua estadia em Leipzig, por volta de 1741, Bach, por encomenda dum Conde que sofria de insónias, compôs um conjunto de 30 variações (e uma ária repetida no início e fim da peça, servindo de base para todo o resto), com o intuito de o entreter nessas noites em claro. Como o conde tinha o seu próprio cravista, um jovem de 14 anos chamado Goldberg, Bach achou por bem atribuir o seu nome à peça que lhe era dirigida, nascendo, então, as Variações Goldberg, homónimas do seu primeiro e original intérprete.
Actualmente as variações Goldberg são tocadas também no piano, sendo Glenn Gould o intérprete que as consagrou neste instrumento, fazendo-o em 1955 para a Columbia Records, numa gravação que lhe impulsionou a carreira e repetindo a graça em 1981 para a Sony, com uma interpretação quase duas vezes mais lenta. Recomendo vivamente a segunda de Gould e a de Schiff (Decca Originals) a qualquer apreciador de Bach.



Findada esta breve introdução, falar-vos-ei agora do concerto que me comprometi a comentar. Habituado ao piano, nunca tinha ouvido uma rendição integral desta peça no cravo, tendo ido para o auditório com expectativas divididas quanto a esta peça: Por um lado, prefiro Bach tocado no piano que no cravo; por outro, as Variações Goldberg são provavelmente a minha peça preferida de Bach para um instrumento de teclas…
Independentemente das minhas ânsias, o concerto começou e Staier definiu na ária imediatamente o tempo que iria demarcar o resto das variações. Marcando algo não tão lento como a segunda gravação de Gould mas não tão rápido como a primeira, Andreas presenteou-nos com um meio-termo agradável e equilibrado, ao mesmo tempo que pessoal e expressivo. Toda a peça foi fluindo com naturalidade, não divergindo muito da sua versão no piano, até à 8ª variação, onde começou a principal disparidade entre a versão cravística e a do seu sucessor evolutivo. Aqui o intérprete passou a tocar a peça em dois teclados (verticalmente sobrepostos) dando uma dinâmica às variações impossível de atingir com o piano. É também de notar alguns efeitos que nunca tinha ouvido serem feitos (ainda não sei como) com o segundo teclado, tornando esta peça ainda mais polifónica do que já era.
É também de notar (apesar de com alguma infelicidade) o comportamento lastimável da plateia da Gulbenkian, que parece não se curar. As constantes tossidelas entre os andamentos (e não nos apogeus sonoros, como é recomendado) têm um efeito ainda mais notório na presença de solistas, o que até levou Andreas Staier, demonstrando um sentido humor cáustico, a tirar um rebuçado para a tosse do bolso a meio do concerto e ingeri-lo perante todos os seus assistentes.

Café Zimmermann

Passando agora para os dias 7 e 11, farei também, à semelhança do parágrafo anterior, uma pequena introdução concernente às peças em questão, e, desta vez, também aos seus intérpretes.
Formado em 1998 por Pablo Valetti (violinista) e Céline Frisch (cravista), o ensemble Café Zimmermann é uma formação orquestral cuja quantidade de músicos varia entre os 6 e os 25. Dedicado especialmente à música antiga, este grupo foi buscar o seu nome ao Café de Gottfried Zimmermann, situado na Rua de Santa Catarina, em Leipzig, que no século XVIII acolhia concertos semanais do Collegium Musicum, um grupo fundando por Telemann e dirigido por Bach entre 1729 e 1739.
260 após a morte de Bach, o ensemble Café Zimmermann realizou esta sessão dupla no auditório da Gulbenkian tocando integralmente os concertos de Brandeburgo. Concluídos em 1721, estes 6 concertos foram criados com o intuito de agradar ao príncipe Christian Ludwig, margrave de Brandeburgo – um douto coleccionador de música.
Provavelmente as obras concertantes mais famosas de Bach, os concertos Brandeburgueses requerem uma interpretação digna da magnitude da peça em questão, o que obriga os executantes a tocar com uma maviosidade pertinaz.
Felizmente, foi exactamente isso que o ensemble Café Zimmermann fez desde o princípio do primeiro concerto a ser tocado (nº4), logo no dia 7. Pablo Valetti e todos os outros músicos atribuíram a esta peça a tessitura adequada à execução de peças barrocas, e diga-se também que o uso de instrumentos antigos (viola de gamba e violone) só veio enaltecer a óptima prestação do grupo. Sobre o concerto de cravo em fá menor, que sucedeu a primeira peça, parece-me adequado dizer ter sido o ponto alto da noite. A cravista Céline Frisch garantiu que o seu papel na orquestra não passava ao lado dos olhos dos espectadores, que, no fim da peça, a aplaudiram correspondentemente.
Seguiram-se os concertos nº6 e nº2 que, à semelhança dos outros, passaram sem qualquer erro a apontar.
Passando agora para o dia 11, é com infelicidade que afirmo que os músicos não mantiveram sempre ao nível a que nos acostumaram dia 7. O inovador concerto nº5 foi iniciado sem qualquer tipo de animosidade e os músicos tornaram a primeira parte da peça algo inexpressivo e até mesmo fraco. Contudo, após o virtuoso capriccio do cravo protagonizado novamente por Frisch, a orquestra ganhou um novo estro, o que compensou a falha inicial. A segunda peça, concerto para dois violinos em Ré menor, solada por Valetti e Plantier, esteve ao nível do que assistimos no primeiro dia, indo os justos aplausos desta vez para os violinistas. Seguiu-se aquele que é talvez o mais famoso concerto Brandeburguês – o terceiro – que foi executado com a vivacidade que o caracteriza e lhe é necessária. No mesmo concerto, o contraste entre o segundo andamento (um adágio que tem apenas dois acordes – o mais curto da literatura musical) foi cuidadosamente demarcado do resto da peça, mas ao mesmo tempo bem inserido, o que retira à peça a estranheza que por vezes os músicos erradamente lhe conferem.
Finalmente, o ensemble Café Zimmermann tocou o concerto nº 1 – o mais elaborado dos seis. Todas as 7 partes deste concerto (o quarto andamento está dividido em 4 partes) foram alternadas com a riqueza tímbrica e tonal obrigatórias a uma boa execução, o que fez com que os Zimmermann fechassem esta série barroca em grande.

Nota final : 4.5/5

Q

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Loucura




Encontrava-me deambulante no Metro do Saldanha e, dada a necessidade de queimar tempo para a aula de violoncelo, decidi visitar a mini-feira-do-livro montada entre a linha vermelha e amarela, nos interstícios do último e penúltimo piso subterrâneo daquela labiríntica estação. Apesar de maioritariamente desinteressante, é de relevar alguns exemplares de autores de renome a preços simbólicos de Euro e meio - Dois euros. De entre colecções antigas da Visão-abril/controljornal e outras semelhantes, destacava-se um livro da Umbreiro de que nunca tinha ouvido falar, mesmo tendo já feito uma apresentação sobre o autor.
"Loucura", uma novela de 80 páginas, figura-se entre as mais desconhecidas, mas porém louváveis, prosas de Mário de Sá-Carneiro.
Datada de "Lisboa, Maio-Junho 1910" por um inidentificado narrador, Loucura é a história da vida e morte de Raul Vilar, um distinguido escultor, cujo inexplicável suicídio é analisado pelo narrador - seu melhor amigo.
Em jovem inimigo das artes, da felicidade, sociabilidade e amor, Raul transforma-se num apaixonado e venturoso romântico, que encontra na arte uma forma de vida.
Já "Sinistramente esquisito" em jovem (como tão eloquentemente nos narra o seu BFF), Raul experencia invulgares oscilações humorísticas, acompanhadas de juízos pedantes e idiossincráticos, retocados por uma loucura sombria e, ao mesmo tempo, romanticamente poética. Atormentado com as futilidades físicas que rodeiam o amor, Raul procura provar a Marcela, sua mulher, que lhe ama a alma e não o corpo, preparando-lhe uma surpresa que se repercutirá também nele próprio, desencadeando o desenlace trágico que serve de tema para o livro.

Não creio ser demasiado forçada a interpretação de que Sá-Carneiro se inspirou na morte do seu amigo Tomás Cabreira Juníor (ou no mesmo enquanto vivo, pois não sei se esta novela é anterior ou posterior à sua morte) que se suicidou na escadaria do Liceu Camões, para criar esta lutuosa novela. Melhor amigo de Mário, também ele era artista, e foi com quem co-escreveu, em 1910 "Amizade", publicada em 1912.
"Locura", um livro que se bebe de um trago, fala-nos de loucuras existenciais, amorosas e artísticas que, num paroxismo extremo, resultam no mais louco de todos os actos. Sá-Carneiro começara já a tecer a sua loucura, revelada ao mundo em 1916.
Eximiamente bem escríto, fluidamente narrado e desprovido de descrições irrelevantes à acção, "Loucura" é aconselhável a todos os apreciadores de literatura portuguesa e não portuguesa. Pecará a obra de Sá-Carneiro por ser monotemática? Ou teria Fernando Pessoa razão quando afirmou que "Sá-Carneiro não teve biografia. Teve só génio. O que disse foi o que viveu"? Inclino-me mais para o segundo.

"Se um dia porém a sorte favorecesse os loucos, se o seu número fosse superior e o género da sua loucura idêntico, eles é que passariam a ser ajuizados: Na terra de cegos quem tem olho é rei, diz o adágio: na terra de doidos, quem tem juízo, é doido, concluo eu.
O meu amigo não pensava como toda a gente...Eu não o compreendia: chamava-lhe doido...
Eis tudo." - Mário de Sá Carneiro.


Nota Final: 5/5


Q

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Ray


Caracterizar, dum ponto de vista aderecista, Ray Charles, não parece, à primeira vista, tarefa difícil. Algum critério na escolha do actor, tendo em conta factores como a idade apropriada para a altura da vida a ser retratada, origem e tez semelhantes à do artista, escolha duma indumentária apropriada à época e, acima de tudo, semelhante ao observável em fotografias, uns Wayfarer que se adeqúem ou qualquer outro tipo de óculos escuros que o músico usasse e temos uma aproximação minimamente sensível a um dos grandes reis do R&B, Gospel, Soul e Blues.
Ressuscitá-lo, contudo, já não é tão fácil.
Diz-se que depois da morte não há vida e que só vivemos uma vez; que a reencarnação não passa de um mito e que a imortalidade é uma fantasia. Felizmente, a arte discorda.
Através da poesia imortalizam-se os poetas. Através dos romances os romancistas. Os sons prolongam a vida dos músicos e os filmes ressuscitam actores e realizadores.
Mais raro é, porém, encontrar artistas que fiquem imortalizados por várias artes, principalmente quando nelas nem participam. Val Kilmer, Kyle MacLachlan e outros garantiram a eternidade no cinema a Jim Morrison e o resto dos The Doors no soberbo e injustamente vaiado “The Doors”, de Oliver Stone; Scorcese garantiu o mesmo a Jake La Motta e Howard Hughes, pugilista e magnata, respectivamente, e pelo que parece (mas ainda não vi) Todd Haynes fê-lo com Dylan.
Ontem, inesperadamente, descobri outro caso de dupla imortalização. Em Ray, uma obra-prima dos tempos modernos, não foi só o músico a ficar registado através do cinema. Jamie Foxx, out of the blue and of the blues, mostrou-se digno de pelo menos uma GRANDE página na história do cinema.

Taylor Hackford, celebrizado em ’97 pelo seu filme “The Devil’s Advocate”, provou que Tarantino não é o único realizador com bom olho para actores desconhecidos ou pouco divulgados no mundo do cinema. Formando um elenco com caras que nos são, acima de tudo, familiares de séries; Kerry Washington – Boston Legal; Regina King – Sandra Palmer em 24; Harry Lennix, 24; ER e Capitão Locke no Matrix; Patrick Bauchau – Sidney em The Pretender (série muito boa e pouco falada), entre outros, mas que desempenharam óptimos papéis e mostraram-se aptos para novas oportunidades nunca antes lhes concedidas. Imagino neste momento o leitor a questionar-se sobre o anacronismo de alguns destes factos. Sim, é verdade que algumas destas séries são posteriores a RAY (2004), mas mantém-se o facto: Actores de séries.

Outro pormenor interessante foi a necessidade de apenas dois actores para desempenhar o papel de Ray (Jamie Foxx – adulto e C.J. Sanders – criança), não tendo sido necessário fazer alterações em nenhum deles a nível facial ou físico para se ajustarem à idade do músico. Este facto deve-se à escolha de Hackford de registar apenas duas fases da vida de Ray:
-A infância, momento da vida em que Ray Charles Robinson, um pobre rapaz oriundo do Oeste da Flórida (Greenville) assiste à morte do irmão pela qual se sente responsável (fardo com que vai carregar para o resto da vida) e a perda da vista, que se tornou total quando tinha sete anos.
- O seu período mais controverso, agitado, e, provavelmente, mais interessante. Os seus primeiros 20 anos como músico (1946-1966). Assistimos à sua ida para Seattle onde começa a gravar e conhece Ahmet Ertegun(Curtis Armstrong), o turco que fundou a Atlantic Records.
Um facto curioso acerca de Ahmet, é a forma como aparece caracterizado psicologicamente neste filme. É, de longe, a personagem mais enternecedora. De todos, é o único que aceita imediatamente tudo o que Ray lhe propõe, que não o julga pelas suas idiossincrasias e que o ajuda nos maus momentos, em vez de o criticar. Quando Ray abandona a sua editora pela ABC Paramount, Ahmet mostra-se solidário com o músico, que por outros é visto como pérfido, e apoia-o na sua decisão, independentemente do quão penalizante é para si. Mencionei este pequeno parêntesis porque foi a morte do mesmo homem, (1923-2006) que fez com que os Led Zeppelin se reunissem em 2007 no O2 Arena para fazer um concerto (inteiro), algo que não faziam desde a morte do John Bonham, em ‘80. He must have been quite something….
O filme continua com uma exibição magistralmente realizada de partes importantes da vida de Ray no intervalo ‘46-‘66. Desde o seu casamento pouco saudável com Della Bea às suas infidelidades frias e insensíveis com Mary Ann Fisher e Margie Hendricks (a primeira uma cantora de Gospel que “contratou” para trabalhar consigo e a segunda uma das Raylettes) à sua contínua e exponente dependência de heroína. Assistimos também à sua evolução enquanto músico e às sucessivas metamorfoses que as suas composições foram experienciando, desde as suas fusões de Gospel com Blues e à sua passagem para o Country.
Os últimos 40 anos da vida de Ray são guardados para o epílogo, em que somos informados da sua consistente e afamada carreira, agora, livre de drogas. O ultimato de Della Bea foi bem claro e bem aceite: “Desta vez não é a tua família ou as tuas amantes, de quem não queres saber assim tanto, que perdes. É a tua música. Larga o veneno.”

Depois de tudo isto, contudo, não resisto a voltar a falar da prestação(vencedora de oscar) de Jamie Foxx. Não só é ele que toca no piano tudo aquilo que ouvimos, como a sensação com que ficamos é que aquele não é o mesmo homem que fez o Miami Vice ou o Solista, mas sim o grande monarca com “Ay” que jamais será esquecido na história da música e, possivelmente, do cinema.
Uma obra-prima dos tempos modernos.

Nota final: 5/5

Q

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

The Men Who Stare at Goats



Se encontrar os nomes
George Clooney, Ewan McGregor, Kevin Spacey, Jeff Bridges e Robert Patrick todos juntos é raro, mais raro ainda é encontrá-los (à excepção do Grande “Dude” Lebowsky) a desempenhar os papeis que assistimos em “The Men who Stare at Goats”.

Bob Wilton (Ewan McGregor), repórter, para além de ter problemas de identidade (não sabe o que são Jedis, o ex-Obi-Wan), sente-se deprimido tanto pelo fim do seu casamento como pela falta de sal que tem a sua vida. Desta forma, para remediar todos estes problemas, decide ir para o Iraque procurar a emoção e entusiasmo que a sua vida, insonsa, não tem.
Porém, ainda no Kuwait, aquando do inicio da sua demanda jornalística, dá de caras com Lyn Cassidy (Clooney), um ex-militar de quem Bob já tinha ouvido falar como sendo um “Jedi-Warrior”, um agente dum grupo especial do exército, responsável por fenómenos paranormais, psíquicos e telepáticos.
Clooney, a quem finalmente foi atribuído um papel invulgar, até nem faz má figura como um homem que diz conseguir ficar invisível, ler mentes e atravessar paredes.
Juntos vão para o Iraque e o resto do filme centra-se, acima de tudo, na história do “esquadrão psíquico” do exército. Narrado por Cassidy, ficamos a saber como Bill Django( hilariante, Jeff Bridges) o formou, como Cassidy foi ascendendo enquanto "Jedi" e como Larry Hooper (interpretado pelo Underrated Kevin Spacey) criou uma rivalidade pouco saudável com Lyn.

Apesar do enredo rabiscado no joelho e do guião feito às três pancadas, Grant Heslov dá-nos algo com que rir, mesmo que seja risível de tão ridículo. Fortemente inspirado no trabalho dos irmãos Coen (Bill Django e o Jeffrey Lebowsky têm um pouco mais em comum do que o actor que os encarna),The Men Who Stare at Goats é, acima de tudo, um apelo à paz feito através do cómico, do satírico e do absurdo. Um filme inimigo da seriedade e que promove a filosofia do “Free your mind; broaden your horizons”. Não interessa se faz sentido ou se é real, desde que nos faça rir e sentir bem.
Num bom sentido: muito riso e pouco siso.

Nota Final: 3/5

Q

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Up in the Air

Capa do livro de Walter Kirn que deu origem ao filme com título homónimo



Danny Ocean, depois do seu êxito em Ocean’s 13 volta à tela para retomar o papel que começara em 2001…. Não, calma….

Seguindo o legado dos irmãos Coen, Jason Reitman dá nova vida a Harry Pfarer …. Também não era ele? Ia jurar que….

Michael Clayton volta à acção, desta vez dirigido pelo filho do canadiano Ivan Reitman…. Alguma coisa não bate certo….

No último e mais prolongado anúncio da Nespresso, desta vez sob mão de um dos mais destacados realizadores da actualidade… Esperem…! Acho que já percebi o que se passa…

A única crítica que não se pode fazer a George Clooney é a da inconstância. O problema é que também não se pode fazer qualquer elogio.
Ao contrário da suposta e típica equação Ocean + Pfarer + Clayton +…. = Clooney, o mais famoso “galã” de Hollywood rege-se pela deprimente Ocean = Clooney = Pfarer = Clooney = Clayton = Clooney =…. Ryan Bingham.

O primeiro pecado a ser cometido pelo premiado realizador Jason Reitman (Juno; Thank You for Smoking) foi o de eleger um actor que não sabe fazer outro papel senão o dele próprio para protagonizar a sua mais recente realização. Felizmente, tal como Danny Ocean, Harry Pfarer e todos os outros indistinguíveis Alter-egos de Clooney, Ryan Bingham (protagonista de Up in the Air) é charmoso, gosta de mulheres, de contar piadas, sentir-se importante e, como qualquer homem de negócios …. De voar!

Veterano e especialista no seu mester, Ryan Bingham (George Clooney) ganha a vida a despedir pessoas e a encaminhá-las para vias alternativas, delicadamente. Despegado de qualquer tipo de laços e imbuído nos seus objectivos idiossincráticos, a sua filosofia e prega é a de que “Quando trabalhamos levamos sempre uma “mochila” connosco. Quanto mais leve for essa mochila melhor nos sucedemos e mais facilmente nos mobilizamos”.
Cem por cento dedicado ao trabalho, os seus 322 dias de viagem por ano são o seu maior prazer, em oposição à tormenta dos 43 dias que passa em “casa”.
Porém, quando a jovem e promissora Natalie Keenman (Anna Kendrick) apresenta o seu projecto de “despedimentos via Web”, Clooney…perdão, Bingham, começa a recear uma eminente alteração do seu tão hedónico modo de vida.
Worried about the shape of things to come, Bingham acusa a novata de inexperiência diante do patrão, ao que o seu chefe responde com a proposta de Ryan levá-la consigo nas suas próximas viagens.
Confrontado com as críticas de Natalie à sua forma de vida, o seu crescente envolvimento com a sua alma gémea Alex (Vera Farmiga – melhor prestação de todo o filme) e a felicidade da sua irmã que se está prestes a casar, Ryan começa a questionar o seu próprio modo de vida e a reponderar a sua filosofia… O resto vejam no cinema.

Depois do seu último (e fantástico) filme Juno, Jason Reitman presenteia-nos com um não tão bom, mas ainda assim surpreendente filme. Com um enredo um pouco fora dos cânones da indústria cinematográfica contemporânea, Reitman apresenta-nos uma não-tão-romântica-comédia-romântica com uma mensagem que nos põe, no mínimo, a reflectir sobre as prioridades da nossa vida.
Carregado com o humor a que Reitman nos começa a habituar, com uma banda sonora toda Bob Dylan – Simon & Garfunkel dos tempos modernos, o realizador conseguiu um filme divertido, pleno de conteúdo e acima de tudo (e para mim, o mais importante) consistente com o que nos apresentara em 2007 com a sua até hoje obra-prima “Juno”.

Auguro um bom futuro a este ainda tão novo e já tão premiado realizador.

Nota Final : 3.5/5

Q

sábado, 30 de janeiro de 2010

Number 9. Number 9. Number 9. Number 9...

Apesar das muitas e diferentes interpretações feitas à musica Revolution 9 dos Beatles(desde uma brincadeira musical, passando por tentativas de inovação e chegando até teorias da conspiração sobre eventuais golpes publicitários), aquela que mais me seduz, mas que provavelmente está errada, é a minha própria.
O tom sombrio e inquietante que caracteriza esta música em muito se associa à lugubridade da conotação musical do número 9.
A chamada "Maldição dos 9" afectou uma considerável parte dos grandes compositores de sinfonias do período romântico. A partir de Mozart (que compôs 41 sinfonias) e Haydn (108 Sinfonias!) reinou uma "maldição" que impedia todos os [grandes] compositores de viver após terem escrito a sua nona sinfonia. De entre os exemplos mais proeminentes destacam-se Beethoven, Vaughan Williams, Schubert, Dvořák, Bruckner e, finalmente, Mahler. Dmitri Shostakovich, autor de 15 sinfonias, foi o primeiro grande compositor a quebrar esta funesta tradição.
Gustav Mahler, contudo, impelido pela sua supersticiosa mulher, Alma, tentou "dar a volta" a este problema e fugir à Maldição. Tinha já composto 9 sinfonias quando decidiu apelidar aquela que sucedia a oitava de "Das lied von der Erde" (Canção da Terra) ou Eine Symphonie für eine Tenor- und eine Alt- (oder Bariton-) Stimme und Orchester (nach Hans Bethges "Die chinesische Flöte") (Uma sinfonia para alto e tenor (ou barítono) e orquestra (a partir da "Flauta Chinesa" de Hans Bethges)) em vez de "Sinfonia no.9". Compôs, então, a sua 10ª sinfonia, (à qual chamou sinfonia no.9) numa tentativa de fugir ao seu destino, enganando a morte. Porém, morreu enquanto compunha a sua Sinfonia nº 10, deixando-a incompleta. À morte ninguém ganha.
Gustav Mahler (1860-1911)


É então no encalço desta introdução que vos falo do concerto que me trouxe aqui hoje.
Realizado na Gulbenkian no dia 29, a orquestra homónima, conduzida pelo maestro francês Bertrand de Billy executou a Sinfonia nº9, em Ré Maior, de Gustav Mahler.
Com um duradouro silêncio, doutamente respeitado pela plateia, Bertrand de Billy deu inicio aquela por muitos considerada a mais bela sinfonia de Mahler. Logo no primeiro andamento, Andante commodo, a tranquilidade harmoniosa com que a orquestra tocou transformou a atmosfera do auditório na do mundo característico das sinfonias Mahlerianas, retirando ao espectador tudo aquilo que o mantém preso à terra, abstraindo-o de todos os elementos circundantes, para além da música. Todas as minhas emoções oscilavam ao ritmo das trompas e dos privilegiados contrabaixos, que, tal como a música, escalaram vertiginosamente por uma parede de sons até um explosivo clímax.
No segundo andamento, este um pouco mais valsado e quieto, a atmosfera manteve-se, bem como o comportamento da orquestra, sempre fiel aquilo que era pretendido.
O terceiro andamento repôs todo o êxtase vivenciado no primeiro, caracterizando-se pela sua imponência expressionista e ao mesmo tempo grotesca.
A entrega total deu-se, porém, no último andamento - adagio - em que a peça atingiu o seu cúmulo apoteótico. As suas longas e lentas frases remeteram-me para um mundo transcendental, onde o enlevo foi imperante.
No fim desta sinfonia o maestro repetiu a façanha do início, submetendo-nos a um silêncio tão inquietante e assombroso como o resto da peça.

Para avaliar interpretações de Mahler imparcialmente é-me necessária uma capacidade abstractiva da qual não disponho, acabando sempre por me render à inclinação afectiva que tenho pelas peças deste compositor. Desta forma, e por não encontrar nada que me oriente diferentemente, sigo a voz das minhas sensações, que me diz para atribuir a este concerto a nota máxima.

Nota Final: 5/5

Q

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

A Grande (Des)Ilusão

Faustrecht der Freiheit - Fassbinder

Sempre que assisto a uma conversa sobre cinema alemão ou vejo qualquer tipo de referência à industria cinematográfica deste país [Alemanha] os nomes que saltam frequentemente à vista são Rainer Werner Fassbinder e Fritz Lang (apesar do último ter nascido na Áustria).

Assim, como amante cinematográfico e absoluto leigo em cinema alemão, a ideia de encetar a visualização de filmes deste país com este renomeado realizador deixou-me ansioso e com expectativas bastante altas em relação a
Faustrecht der Freiheit (esqueci-me do título do filme em português e não encontrei na net, só "Fox and his friends"). Infelizmente, "É das grandes esperanças que nascem as grandes desilusões " - Vladimir Putin (acerca do Obama ahah)

A premissa do filme não era má; era aliás, bastante boa: Um jovem e pobre trabalhador de circo, totalmente cândido e ignorante, ganha a lotaria e de um dia para o outro a sua vida muda. Homossexual, apaixona-se por um homem duma classe social diferente, um típico aristocrata que, sem Fox (o protagonista) perceber, planeia ludibriá-lo ao máximo, extorquindo-lhe tudo o que ganhara.
O problema aqui não foi a idealização, mas sim, a realização.

Por volta do décimo minuto do filme, quando a situação que está prestes a desenrolar-se é-nos exposta, a ideia do logro e a crueldade que dele advém criou em mim uma inquietação (extremamente agradável) que esperava manter-se durante o resto do filme, um horror à conduta de Eugene (o aristocrata) e do resto dos seus amigos, uma crescente preocupação com o protaginista e um sentimento de empatia para com ele que me fizesse repudiar os seus lograntes. Era essa (creio) a intenção de Fassbinder ao realizar este filme e foi exactamente aí que o realizador falhou. Nem empatia, nem preocupação. Nada. Amoção e total indiferença.

O que contribuiu, então, para este erro crasso, a falta de expressividade do filme?

O primeiro, e talvez o mais importante, as personagens em si. O excesso de ingenuidade que caracteriza Fox tornava este filme tão interessante como um jogo de ténis entre a minhã (inexistente) irmã e o Roger Federer. A facilidade com que este "emprestava" centenas de milhares de Marcos a recém-conhecidos ou a forma irracional e imediata como reagia a críticas por parte do seu suposto amante dão a todas as situações deste filme uma inverossímilhança e implausibilidade que mete dó, ou nem isso. Dá a entender que, por falta de imaginação ou empenho, o realizador procurou maneiras fáceis e pouco elaboradas de projectar este logro. (É o que dá fazer tantos filmes em tão pouco tempo)

O segundo, também relacionado com as personagens, são os actores, ou a direcção destes. Fassbinder (como actor - protagonista) manteve a mesma expressão durante todo o filme. Quer em momentos em que devia rir quer quando devia chorar. Uma decepcionante monocordia e uma imutável atitude. Quando ao resto do elenco, mais do mesmo.

Contudo, a inexpressividade deste filme não se fica só pelas personagens. Até a clareza da mensagem era dúbia. O personagem principal era tão estúpido, desinteressante e surreal que quase dá a ideia de que os alvos da "crítica" não eram os aristocratas que o burlaram mas sim os pobres - tão ignorantes e imcompetentes que não deviam ter o direito de ter tanto dinheiro. Sinceramente dúvido que fosse isso que Fassbinder queria transmitir.

Nota Final : 2/5

Q

O Dissabor da Cereja


O Sabor da Cereja - Abbas Kiarostami

Dado o facto de ter sido vencedor da palma d'ouro de 97, ser uma amostra dum suposto brilhantismo Iraniano - algo totalmente diferente para nós - e aclamado positivamente por alguma crítica, o Sabor da Cereja tinha todos os ingredientes atractivos para ser um óptimo filme. Contudo, "The bigger the height the harder the fall".

A simplicidade do enredo poderia reduzir este filme a uma curta metragem: Um homem iraniano, hesitante em suicidar-se, procura cumplices para ajudá-lo a tomar essa decisão e auxiliá-lo no acto. O primeiro, um jovem recruta do exército, amedrontado com a obscuridade da proposta, foge a sete pés. O segundo, um seminarista aplicado, recusa a proposta dada a sua posição religiosa e as suas convicções e tenta dissuadir o protagonista de a levar a cabo. O terceiro e último, um biólogo com necessidades económicas, apesar de o fazer com alguma reluctância, aceita a sugestão proposta pelo "Sr Badhi" - o protagonista - e promete cumpri-la. Não obstante, é este [o biólogo] o personagem que mais tenta influenciar a decisão de Badhi, evocando momentos do seu passado em que se encontrara numa situação semelhante à do Iraniano. O desenlace da situação de Badhi é uma incógnita e o filme acaba com filmagens "cruas" (Rare footage) do próprio Kiarostami, os actores e toda a equipa a realizar o filme que acabáramos de ver. Ah, um "pormenor" : Mais de 80% do filme passa-se dentro de um Range Rover a ser conduzido pelo protagonista, as deslocações são todas em tempo real e o deserto é paisagem dominante em toda a hora e meia. "Pormenores"...

Dum ponto de vista puramente cinematográfico, não posso dizer que tenha gostado do filme. Apesar do tão elogiado “virtuosismo técnico” de Kiarostami e da excelente prestação do actor Homayon Ershadi (Sr Badhi) o Sabor da Cereja ficou aquém das minhas expectativas. A monocordia dos diálogos, a monotonia paisagística, a excessiva duração do filme e a forma superficial como os temas foram abordados são alguns dos pontos negativos que encontro neste filme. Talvez desse uma boa curta-metragem, mas nunca uma longa de 95 minutos. E na sequência desta crítica, rejeito alguns comentários que dizem que só acha este filme secante quem apenas tem olhos para grandes produções de Hollywood . Já vi filmes tão ou mais lentos quanto este, com muito menos diálogos e acção mais reduzida e adorei. A adaptação cinematográfica do Stanley Kubrick da obra prima de ficção científica de Arthur C. Clark “2001: A Space Odyssey” ou o pitoresco “Barry Lyndon”, do mesmo realizador são exemplos de filmes com durações na orla das 3 horas, repletas de cenas lentas e paradas, mas que ainda assim entram na minha lista de filmes preferidos. Até nos filmes de João César Monteiro, incluindo “A Comédia de Deus”, existem imensas cenas que nunca poderiam figurar numa produção hollywoodesca dada a sua falta de movimento ou de entretenimento gratuito e fácil, mas não foi por isso que deixei de adorar o filme. A diferença entre esses filmes e o Sabor da Cereja é que no último não há qualquer conteúdo estético digno de apreço. Em oposição a explosões de cores nunca antes vistas ou a estações espaciais a “dançar” ao som de valsas do Strauss, a motivos bucólicos duma beleza rara e a momentos pessoais e idiossincráticos duma serenidade impressionante (uma cena linda da Comédia de Deus em que uma mulher se deita na mesa do João de Deus e começa a “nadar”), neste filme apenas vemos areia, areia e mais areia. O problema pode ser a minha falta de sensibilidade estética, mas ainda assim….

Outra exprobração que considero essencial fazer a este filme é à inadequação da cena final, em que nos são mostradas filmagens da realização do próprio filme. Considero que a adição deste elemento meta- ficcional é totalmente despropositada e não tem nada que ver com o assunto em questão. Em “Persona” (em português “A Máscara”), de Ingmar Bergman, assistimos a constantes lembranças de que aquilo que estamos a ver é apenas um filme e nada mais, e no final há uma aparição de Bergman acompanhado pelo director de fotografia Sven Nykvist, também eles a projectar o filme e a filmá-lo, como Kiarostami neste. A grande diferença é que no primeiro (filme sobre a perda de identidade e da sanidade mental associada ao uso de “máscaras” e fingimentos) o realizador quer-nos mostrar que as personagens que vemos no filme são as actrizes Bibi Andersson e Liv Ulmann e que elas estão a usar uma “máscara” ao interpretar aquelas personagens, apesar de o fazerem duma forma tão realista e intensa, libertando-se quase de si próprias para desempenharem aqueles papéis. No último o sentido disso é …..? Mostrar que aquilo era só um filme? Enganar o espectador de alguma forma? Não consigo mesmo perceber qual foi o sentido daquela cena.

Dum ponto de vista filosófico também não achei o filme grande espingarda. Acho que das questões levantadas (Haverá legitimidade moral no suicídio? Deverá haver qualquer tipo de legislação sobre este? Fará sentido, em alguma situação, escolher a morte em detrimento da vida (excluindo coisas como a eutanásia e afins)? Devemos, em alguma situação, ajudar alguém a morrer? Ou dum ponto de vista mais pessoal - “como deveríamos agir se nos deparássemos com aquela situação?) apenas a primeira foi abordada com alguma profundidade no filme, mas acho-a também a menos interessante dum ponto de vista filosófico. A minha posição quanto a essa questão é extremamente redutora pois acho que o único entrave que vejo ao suicídio é de cariz religioso. Como defendo uma total laicização dos estados…..
Quanto ás outras questões (as interessantes), o filme limitou-se a raspar ao de leve pela sua superfície. Achei que os diálogos que as abordavam eram bastante prosaicos e até mesmo “clichés”. Um guião adequado a uma produção hollywoodesca.


Em suma, apesar de não ter gostado do filme, não o detestei e não o achei péssimo. Simplesmente não percebo o Juri de Cannes.

Nota final : 2/5

Q

You're a mean one....Mr Haydn

O conceito de "música popular" é geralmente associado ao seu género homónimo, a Pop Music, o que nos faz por vezes esquecer o verdadeiro e original significado da palavra "popular". "Popular", na sua acepção mais comum significa que "é do agrado do povo". Dum ponto de vista musical pouco varia, excepto num pequeno parâmetro: "Música enquanto forma de entretenimento". Apesar de discutibilidade destas definições, o termo "popular" é quase unanimemente atribuído à Serenata nº 6 em Ré Maior, K.239 e à Serenata para cordas em Sol Maior - Ein Kleine Nachtmusik, K.525 de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791). Aliás, mesmo dum ponto de vista histórico, as designações taxonómicas de "Serenata", Notturno" e "Divertimento" estão e sempre foram associadas a um carácter social e lúdico, tocadas geralmente para fins de entretenimento.
Agregadas a duas peças dum compositor que tinha em não muito alta estima, Franz Joseph Haydn (1732-1809), as expectativas que tinha para este concerto (21 de Janeiro - Gulbenkian) eram baixas, esperando apenas algo "divertido".
Estava, claramente, inconsciente em relação a dois factores de magistral importância:
- As peças do Haydn que iam ser tocadas, um concerto para violoncelo e um para oboé, ambos totalmente desconhecidos para mim.
- O violoncelista Lynn Harrell - um nome a não esquecer.


O concerto teve inicio com a Serenata Notturna (nº6), para duas orquestras de Mozart. Destaque para a performance do quarteto de cordas principal, especialmente para o violinista Pedro Pacheco. Uma interpretação tão festiva e harmoniosa como a peça em si. Acima da expectativas.
Seguidamente - o ponto alto da noite: Concerto para Violoncelo e Orquestra em Dó Maior, Hob.VIIb:1 - Haydn.
Sinceramente, não sei o que mais me espantou. Se foi a colossal atractividade duma peça dum compositor de que não gostava muito (atribuída a Haydn apenas em 1961!) ou o virtuosismo heterotético dum violoncelista desconhecido para mim. A leveza e simplicidade com que Lynn Harrell deslizava os seus dedos pelo braço do violoncelo, atingindo tons característicos duma violeta ou até mesmo dum violino impressionaram-me e agarraram todas as cordas da minha atenção. Foi então no primeiro solo que se deu algo de inédito. Lynn Harrell prolongou o seu estupendo solo para a entrada do primeiro andamento da 2ª Sinfonia de Gustav Mahler (1860-1911), rindo-se enquanto o fazia. Nem todos têm esses direitos.... Simplesmente delicioso.
Como seria de esperar a ovação fez-lhe jus à performance, sendo eu um dos maiores entusiastas do público. Os meus aplausos foram de certeza os mais audíveis.
Também ele entusiasmado e profundamente agradecido, aproveitou, num momento extra-programático, para tocar o Bourrée da terceira Suite para Violoncelo do Bach. Outra delícia.
Lynn Harrell (foto)

A última surpresa veio naquela que pode ser considerada a segunda parte do concerto. Desta vez não foi o intérprete Pedro Ribeiro (oboísta) quem mais se destacou mas a peça em si. O concerto para Oboé e Orquestra em Dó maior, Hob.VIIg:C1 de Haydn mostrou-se como a peça mais bonita que ouvi deste compositor. A ligeireza desta peça, composta para um dos mais leves instrumentos de sopro - o oboé - equiparam a beleza deste concerto ao nível de alguns quintetos do Mozart. Não é por acaso que a autoria desta peça é veementemente discutida entre mais prestigiados musicólogos, dada as suas tendências estílisticas Pós-Mozartianas. You're a mean one Mr Haydn.....
Para fechar este concerto, a orquestra Gulbenkian, dirigida por Lawrence Foster (Irrepreensível, como de costume - o Maestro títular da orquestra) tocou a provavelmente mais conhecida serenata de Mozart. Talvez tenha sido dos dois choques que a antecederam, ou do cansaço já evidente, mas soou-me a pouco. Momento baixo da noite, indubitavelmente.
Terminou assim esta agradável surpresa. Sem dúvida, muito acima das expectativas.
Mr Haydn, it seems we have to know each other a little better....

Nota final : 4.5/5

Q

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Winterreise - Schubert/Zender

Peter Rundel(foto)


Quando em 1827 Franz Schubert (1797-1828) compôs, para o piano e para voz, um ciclo de 24 lieder baseados nos poemas líricos de Wilhelm Müller, não lhe passou certamente pela cabeça a transformação que Hans Zender faria, 166 anos depois, ao seu querido Winterreise.
Transposta do piano para uma pequena orquestra e do frequente barítono para o original tenor, a versão de Zender encaixa-se perfeitamente no estilo vanguardista característico dos finais do século XX.

Foi então a 17 de Janeiro, sob a direcção de Peter Rundel, que o Remix Ensemble e o tenor Christoph Prégardien apresentaram, no grande auditório da Gulbenkian, esta inovadora versão do Winterreise.

A estranheza do evento começou ainda antes do soar das baladas, aquando da entrada na sala. Os habitualmente desocupados corredores da plateia estavam preenchidos, em linha, por pratos de choque e partituras para sopro. Não tinha ainda a orquestra entrado mas estava já a grande maioria dos instrumentos plantados no palco. Desde aparentemente inúteis tábuas de madeira a "cortinas de ferro", todo o estrado estava repleto de extravagâncias nunca antes associadas a música. Let the show begin.

A explosão inicial da introdutória "Gute Nacht", assemelhava-se à original em pouco mais que na letra. Com uma total distorção do tema e adição de elementos cénicos inéditos, esta versão zenderiana deu um toque totalmente novo à peça, tornado-a em algo muito mais interactivo e teátrico. Instrumentos totalmente desconhecidos para mim simulavam as condições meteorológicas de que o viandante, no decorrer da sua "Viagem de Inverno", era alvo. A amplificação electrónica da voz em pequenos trechos mais irados e silêncios inesperados e abruptos davam a esta interpretação uma vivacidade e animosidade não características da Lieder Schubertiana mas ainda assim agradável e facilmente receptível. A dispersão dos instrumentos de sopro por todo o auditório conferiam ao espectador uma sensação de holofonia jamais vista e criavam nesta peça uma dinâmica entusiasmante.
Quanto às prestações, tanto o maestro, como o tenor e a orquestra estiveram irrepreensíveis. Peter Rundel mostrou-se ao nível duma peça de tamanha modernidade e Christoph Prégardien fez justiça ao destaque que tem recebido. Contudo, dada a excentricidade e vanguardismo do concerto em questão, o mais inesperado foi a recepção do público. Uma massiva 'standing ovation' acompanhada de repetidos e sonoros "Bravos".

Acima de tudo: Divertido. Nada, porém, substitui a minha adorada gravação da EMI do Dietrich Fischer-Dieskau (Barítono) e Gerald Moore (Piano). Há coisas que nunca serão ultrapassadas.

Nota final: 4/5

Q

CODA

Este blog foi criado com o propósito de registar as minhas opiniões no que concerne a concertos, cds, filmes, livros e tudo aquilo que considerar bons alvos de crítica.

O endereço deste blog, inspirado pela música "French Fries With Pepper", dos Morphine, foi escolhido por diversas razões:
- Era a música que estava a ouvir; Adequa-se ao contexto (criticas musicais) e a combinação de batatas fritas com pimenta assemelha-se à combinação temática daquilo que será aqui registado.

O título vigente, CODA, também não foi escolhido por acaso. CODA - "Floreio final de um trecho musical" para além de se relacionar com os tópicos aqui tratados, é o nome do último albúm dos Led Zeppelin, pelos quais nutro uma estima e a afecto superior a qualquer outro grupo.

É só depois das codas que podemos ter uma opinião minimamente formulada sobre algo, e só a partir daí é que podem nascer as críticas e opiniões sobre aquilo que acabámos de ouvir, ver ou ler.

Aproveito a CODA desta descrição para caracterizar este blog como algo totalmente despido de pretensões e de high achievements. Foi criado apenas pelo puro prazer da crítica.

Yours Truly,

Q
 
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