sexta-feira, 11 de outubro de 2013

A Banalidade do Mal

Quase dois anos depois, decidi voltar a pôr aqui alguma coisa. Mas isto não significa que daqui venha uma onda de assiduidade. Oh no....


Nesta semana o meu cinema focou-se na perspectiva alemã do Nazismo e no fundamento sociopsicológico dos regimes autoritários. Para além de interessantes, todos estes filmes coincidem na extrema importância das suas análises, pois é na compreensão da génese dos fenómenos passados que reside o poder de evitar reproduções futuras. Neste caso específico este entendimento é imperativo, dado que foi exatamente a incapacidade de formular juízos críticos e independentes que possibilitou que tamanhas barbaridades fossem banalizadas ao ponto de se tornarem “Normais” e massivas. Aliás, como alguns autores sugerem, foi o acriticismo e neutralidade, não a maldade, que causaram o holocausto.

“I luoghi più caldi dell'inferno sono riservati a coloro che in un periodo di crisi morale si mantengono neutrali “-Dante Alighieri, in Inferno.

Der Untergang – A Queda: Hitler e o fim do Terceiro Reich. (2004), de Oliver Hirschbiegel

Este filme, tão cinzento de estética como de tema, relata os últimos dias de Hitler e dos seus fieis mais íntimos. Dá-nos uma imagem deprimente da atmosfera cultivada entre os altos mandatários do partido Nazi e do desvario mental que movia o homem que moveu milhões. Abril de 1945, passado quase integralmente num bunker numa Berlim destruída e prestes a ser invadida pelos Russos, assistimos ao fosso decadente que o terceiro Reich cavou antes de finalmente cair. 
Bruno Ganz é notável como Hitler e Hirschbiegel dota ao filme uma atmosfera tão crua e desumana que podemos, mais que observar, sentir a angustia inerente  a toda a situação. Um filme a não repetir.


Das Experiment – A experiência (2001), de Oliver Hirschbiegel.

Baseada na famosa “Stanford Prison Experiment” (quantas vezes não terá sido citada para criticar a praxe académica), Das Experiment simula, através de voluntários,  os efeitos psicológicos de desempenhar papéis de autoridade e submissão. 10 voluntários são sorteados para fazer de guarda, 10 de prisioneiro. Durante duas semanas cada um tem que cumprir o seu papel com aquilo que supõe ser o maior realismo e seriedade possível, caso contrário não recebe os 4000 mil marcos prometidos.
Medíocre a vários níveis (especialmente nas side-stories incorporadas ao protagonista), este filme, contudo, é eficaz na chamada de atenção que faz ao apego ao role-playing e à desumanização sofrida pelos seus executantes. Os guardas rapidamente aproveitam o novo “poder” para sobrecompensar a sua embaraçosa condição pessoal e quando os abusos descarrilam não há oposição dentro do próprio grupo, já que todos temem perder o seu lugar privilegiado.  Já os prisioneiros mostram-se cada dia mais complacentes, submissos e destituídos de individualidade. Mesmo com a possibilidade de revolta, a despersonalização é tal que se volvem impotentes. Como bem nos sugeriu a guia de visita em Auschwitz, “Já alguma vez pensaram porque é que os Judeus não se revoltaram? Afinal de contas, eles não tinham nada a perder! Não era tão simples, tão fácil? Tão evitável?.....Será?”


Hannah Arendt (2012), de Margarethe Von Trotta

Este filme biográfico, provavelmente o melhor (sem dúvida o mais importante) da série aqui apresentada, mostra-nos um período da vida de Hannah Arendt (e de forma dispensável por tão superficial, resquícios da sua relação com Heidegger) na qual se manteve forte e convicta da sua expressão individual não obstante as adversidades.
Judia, filósofa e ensaísta,  é no papel de jornalista que viaja de Nova Iorque, onde vive e lecciona alemão na universidade, a Israel para assistir ao julgamento de Adolf Eichmann, tenente-coronel da SS, um dos maiores responsáveis da logística necessária ao transporte de judeus para os guetos e, por fim, campos de concentração.
Contrariamente às expectativas, não foi o habitual arquétipo do Nazi – um ser cruel, temível e dominante – que Hannah encontrou. Antes, um homem banal, comezinho, despersonalizado e totalmente submisso a uma ideia pela qual nem nutria grandes afeções pessoais. Quando interrogado se mataria os próprios pais se se provassem traidores ao Reich, Eichmann responde afirmativamente, pois tinha jurado fidelidade ao Fuhrer. Hannah Arendt conclui que Eichmann não é mais que um burocrata, uma vítima dum sistema que promove a acefalia e o acriticismo, por muito bom que fosse no seu mester. E que, tal como como Eichmann, não foi o Anti-semitismo mas esta “banalização do mal” que mobilizou a maioria dos alemães a aquiescer o holocausto.
De volta a NY já com o artigo publicado, Arendt tem quase toda a comunidade judaica contra si. Enviam-lhe ameaças de morte, convidam-na a abandonar o seu posto na faculdade, insultam-na publicamente e até mesmo velhos amigos lhe deixam de falar. Para além do marido, dos alunos e de poucos íntimos, ninguém a apoia. No entanto, mesmo perante estas contrariedades extremamente convidativas à resignação (afinal de contas, Arendt vivia prospera e luxuosamente), Hannah não apazigua o ânimo com que defende a sua tese e mantém-se firme no seu discurso. Contrariamente a Eichmann, contrariamente aos Nazis, contrariamente às “mentes banais.” Um filme maravilhoso.






Wakolda - El Médico Alemán (2013), de Lucía Puenzo

Estreada hoje em Espanha, esta produção argentina também relata uma (presuntiva) história real. Neste caso, uma das histórias de Josef Mengele, também conhecido como “O Anjo da Morte”, após a sua fuga para a Patagónia e outras zonas da América do Sul.
Este filme dá por adquirido que sabemos o background de Mengele. Médico da SS em Auschwitz e Birkenau, Mengele era um terrorista muito próprio. Conhecido por determinar quem morria e quem estava apto para trabalhar na chegada aos campos, foi na experimentação em humanos que mais se destacou. As suas experiências incluíam testar a eficácia e resistência dos fatos da SS em condições extremas (medir, por exemplo, quanto tempo aguentava um judeu em águas geladas com ou sem o fato), injetar substâncias que mudassem a cor dos olhos de forma a ver se se podia “provocar o arianismo”, transplantes sem anestesia, vivissecções,  tentar juntar bebés separados para induzir o estado de siameses, transplantar um terceiro olho em diferentes partes do corpo, criar circuitos fechados entre o sistema urinário e o digestivo e toda uma panóplia de atrocidades que tardariam páginas e páginas em descrever.
Estamos em 1960 e Mengele faz-se passar Helmut Gregor, um médico alemão que, imigrante na Argentina, se dedica à experimentação em suínos. Atraído pela “estranha harmonia em tanta imperfeição” duma rapariga de 12 anos, “Helmut”, qual Humbert Humbert, inicia uma fixação perversa pela jovem Lilith.
Insere-se no seu seio familiar ao alugar um quarto num hotel do qual são donos, e durante alguns meses experimenta uma hormona de crescimento apenas testada em animais. Lilith, pequena por defeitos genéticos e parto prematuro, é o perfeito espécimen para tornar um ser imperfeito numa sublime criatura ariana.  Ao mesmo tempo, Eva, mãe de Lilith, grávida de gémeos, é cobaia das experiências de Helmut, que, seguindo o método do seu ortónimo Mengele, usa um dos gémeos de controlo.
Contrariamente ao que aconteceu com Eichmann (também na Argentina em 1960), o Mossad nunca pôs as mãos no “Anjo da Morte”, que escapando para o Paraguai suspeita-se ter morrido no Brasil em 1979, vítima de afogamento acidental.
Contrariamente a Eichmann, Mengele é projetado como um ser frio, calculista e temível. Alex Brendemühl transmite esta imagem de uma forma absolutamente arrepiante.
Este filme serve para nos lembrar de duas coisas.
1)   Nem todos os Nazis sofriam da mesma reactividade de Eichmann. Alguns eram movidos por interesses pessoais e eram dominados não por um sentimento colectivo para sim por uma obsessão interior que não olhava a moralismos.
2)   Que a perseguição de ideias, especialmente aquelas que visam atingir algum estado de perfeição, pode-se tornar tão perigosa como a sua ausência. A consciência ética deve estar sempre presente na validação de qualquer ação, independentemente do seu presuntivo benefício para um ideal – seja ele científico, social, médico, etc. A título de exemplo pode-se referir o muito menos citado Walter Freeman, psiquiatra americano que, num frenesí para “erradicar a doença mental do mundo” efetuou milhares (cerca de 3400) de lobotomias cegas, aleatórias e profundamente desumanas, chegando a fazê-las sem condições de esterilidade, às três pancadas e em dois minutos. Até mesmo sem o consentimento dos “pacientes”.   E para os mais cépticos, isto passou-se ao longo dos anos 50’ e 60’ – ou seja, durante o choque da WWII.



Apesar deste post se basear fundamentalmente nos filmes que vi esta semana, vêm-me à cabeça outras duas obras relacionadas com o assunto, talvez até de forma mais profunda. Uma, também da esfera cinematográfica é Das weiße Band - Eine deutsche Kindergeschichte. – O Laço Branco (2009), do bi-galardoado Michael Haneke.
Em , Das weiße Band (Palma de Ouro 2009) , Michael Haneke entra nas profundezas psicodinâmicas daqueles que viriam a apoiar a Alemanha Nazi. O filme (aqui a minha memória já não é tão clara) centra-se na atmosfera ultra-repressiva duma pequena aldeia religiosa na Alemanha rural no período pre-primeira guerra mundial, algures entre 1910 e 1914. As crianças, os verdadeiros protagonistas, crescem num meio puritano e cruel. Como símbolo de castidade, são obrigadas a atar os braços por um lenço branco e é sobre elas que recai a primeira suspeita quando acontecimentos bizarros ocorrem na vila.
Haneke sugere-nos que não foi tanto uma motivação ideológica mas um vazio existencial e moral que realmente conduziu às loucuras expansionistas e sádicas da Alemanha durante a WWII; Sementes do mal, plantadas em 1910s e brotadas em  1930s.



Para compendiar todas estas perspectivas – Ideológicas, sociológicas, biológicas e psicológicas – está aquela que considero (dentro das poucas que referi) a mais importante obra sobre a génese do Nazismo.
Escrito nos Estados Unidos pelo psicossociólogo Alemão Erich Fromm, O Medo à Liberdade (1941).
Nesta obra Fromm defende que o ser humano, contrariamente aquilo que se possa crer, tem uma tendência “inata” para ceder a situações que restrinjam a sua liberdade individual. Que a espontaneidade que supõe tal liberdade é tão reprimida e alvo de estímulos negativos por parte da sociedade e dos nossos educadores, que nos sentimos mais cómodos sob a alçada duma mão que nos guie, embora nos aprisione. Que inconscientemente, embora voluntariamente, nos submetemos a um controlo global, massivo e alheio para evitar a solidão moral que advém da liberdade de pensamento.
Desenvolver e justificar esta ideia em poucas linhas é fútil e aos interessados aconselha-se que leiam o livro – perfeitamente inteligível. No entanto, é com base nesta premissa que Fromm intitula um dos capítulos de “A psicologia do Nazismo”. Nele, Fromm rejeita a ideia de que foram factores meramente económicos ou políticos (perda de poder devido ao tratado de Versalhes) que impulsionaram o nazismo. A sua tese é a de que houve uma motivação psicológica profunda por parte dos alemães para apoiar algo que os engrandecesse, e que no caso de Hitler, segundo uma análise ao Mein Kampf, foi uma necessidade de dominância sobre uma grande massa que o motivou a perseguir os seus ideais. O povo alemão pro Nazi, o Fromm divide-o em 2 grupos importantes:
- Os da classe alta, que tinham todo o interesse em preservar o seu estatuto social e até mesmo ganhar poder político.
- Os da classe média-baixa. Este é o grupo mais importante, não só pela sua dimensão, mas porque eram os que mais inferiorizados se sentiam. Eram aqueles que, segundo Fromm, sentiam uma maior necessidade de se ligar e pertencer a “algo maior que eles”, algo tão grande, que, incorporado como parte do próprio, engrandecia o (ilusório) eu.
Obviamente que nenhuma destas duas razões justificam o caminho para o holocausto. No entanto, aliados ao acriticismo que descreveu Hannah Arendt, eram os grandes motivadores para que fechassem os olhos e aceitassem qualquer argumento e suportar qualquer ação do governo. O que interessava era que eles não fossem afectados. O que interessava era uma Alemanha dominante, já que isso se traduzia num Eu dominante.
Por muito cépticos que possamos ser em relação a argumentos psicodinâmicos, a própria conduta narcisista de Walter Freeman II em realizar tantas lobotomias e a ser tão grande e importante se pode justificar com a sua relação paterna. Seu avô, Willam Keen e seu pai, Walter Freeman I,  eram médicos bem sucedidos e altamente reputados. Toda a infância de Freeman foi rodeada duma pressão brutal para o êxito que não estava, de todo, a ser correspondida pelas suas demonstrações, até à altura medíocres.

Para terminar, uma citação de um Founding Father dos USA, desta vez de um dos únicos dogmas a seguir sempre:

Nothing then is unchangeable but the inherent and inalienable rights of man.
Thomas Jefferson


sábado, 28 de maio de 2011

The Tree of Life- Eine Symphonie auf dem Bildschirm




Não é a berrar que o Homem se faz ouvir, ou a brilhar que se faz ver. Perante a vastidão do Universo e a força bruta duma natureza fogosa e marulhenta, é apenas na criação artística que um ser tão diminuto no panorama universal arranja espaço para se impor. Quando em 1977 se tentou comunicar com vida extra-terrestre através do “Voyager Golden Record”, a música foi a grande protagonista, ocupando mais de uma hora na gravação. E não há de ter sido por acaso. O expoente máximo da humanidade reside na arte, e só através dela podemos expor algo que se faça realmente ver ou ouvir. É a nossa forma de ripostar face à insignificância que nos persegue.
Não que toda a arte seja grandiosa ou que o deva tentar ser; grande parte da melhor arte prende-se com temas pequenos e inúteis, válidos somente para o usufruto do belo. Contudo, de quando em quando, algum génio de tímida frequência, qual Zeus dum Olimpo terrestre, despedaça-nos os sentidos com os seus raios criadores. De entre os poucos e ousados capazes de fazer jus à tarefa hercúlea de elevar um assunto apocalíptico aos céus, nomeiam-se sem dúvida Bach e Mahler, na música, não esquecendo os Requiems do Mozart ou do Fauré como exemplos proeminentes. No cinema, poucos igualam o cosmológico 2001 Odisseia no Espaço ou atingem o estatuto de Ingmar Bergman no Sétimo Selo ou no mais humano de todos os seus filmes: Persona. É através da arte que podemos mimetar a imensidão que nos envolve e é apenas com grandiosidade que essa imensidão pode ser satisfatoriamente imitada. Os esforços supérfluos para tratar os “grandes temas” são a escória da arte. Os profundos pouco esforçados, por outro lado, o seu auge.
Eis que 100 anos após o fim de Gustav Mahler, mais precisamente na semana em que se comemorou o centenário da sua morte, Terrence Malick traz a Cannes o fruto dum trabalho de mais de 6 anos: “The Tree of Life”. O seu quinto filme ou sinfonia de imagens, como alguns lhe chamam, que finalmente lhe deu a Palma de Ouro. Eu gosto de pensar que é a 11ª de Mahler, e no fim explicarei porquê.
Em 67 anos de vida e 42 de trabalho, realizar apenas 5 filmes é muito pouco. Kubrick não andou muito longe disso, mas aos génios permitem-se loucuras. E a Malick? Até ontem não tinha visto nenhum filme dele, mas se os outros 4 forem do nível deste 2011 Odisseia no Espaço, parece-me justo.
As comparações com o filme de Kubrick não se devem somente ao tema, o “Grande Mistério do Sentido da Vida”. Para além da análise da evolução da vida desde o Big Bang aos tempos de hoje, toda a realização e cinematografia demonstram uma acuidade no uso da câmara que se classificará, no mínimo, como poética. Se a delicadeza duma estação espacial dançante conjugada com um Danúbio azul tecnológico ou a viagem final pelo tempo, espaço, cor, som e existência nos apanhou desprevenidos, a sequência cosmológica da origem, evolução, força e beleza do universo e da natureza, sustentada por uma Lacrimosa menos familiar e excertos de requiems pesados, também nos leva ao céu. E como se o paralelismo cosmológico com Kubrick não bastasse, a vertente humanística e religiosa de Bergman também está presente. Não me parece casual a escolha de Jessica Chastain, cara chapada de Liv Ulmann há 40 anos, para desempenhar o papel quase mudo e recheado de close-ups duma mãe que eventualmente acaba por perder um dos filhos, qual Elisabeth Vogler ou Alma Mahler.


O tema do filme é imediatamente exposto no título e na citação de Job que aparece logo no inicio. Começamos então por ver uma luz/chama espirituosa com presença intermitente em todo o filme e por ouvir uma mulher, em voz-off, a asserir: “There are two ways through life: the way of nature, and the way of Grace. You have to choose which one you'll follow.”
A partir desse momento estamos cientes do tipo de filme a que vamos assistir. Uma “guerra” dicotómica entre a fé e a ciência, exposta dum ponto de vista céptico e inconclusivo.
Meet the Obrien’s: Típica família da suburbia americana dos anos 50 constituída pelo Pater-familias (Brad Pitt), pela Mãe (Jessica Chastain) e pelos seus três filhos, Steve (Tye Sheridan), R.L (Laramie Eppler) e Jack (Hunter McCracken), sendo este último o primogénito. A primeira imagem que temos deles é a da mãe (já nos anos 60?) a receber um telegrama (vindo da Guerra do Vietnam?) a anunciar a morte de um dos filhos (R.L, presumivelmente) e do pai a receber uma chamada com a mesma notícia. Os sons titânicos do início da 1ª sinfonia de Mahler (tão adequada como teriam sido as Kindertotenlieder) começam e a atmosfera é pesarosa. “O que é que pode suavizar a morte, que não a fé?” “Porque é que o quiseste assim?” “Fiz algo que Tu não aprovasses?” A chama reacende-se e a voz-off, arrepiante como no inicio, questiona-se.
Seguidamente vemos um adulto de sucesso (mais tarde descobrimos ser Jack já adulto) (Sean Penn), num outro tempo e duma outra geração, na sua casa moderna e no seu posto de prestígio. Mas algo não está bem com ele. A sua cara denuncia tristeza e desespero extremo. Lembrava-se da morte do irmão.
É então que o filme dá a sua primeira reviravolta. Entramos na tal viagem kubrickiana já mencionada e por fim voltamos aos O‘brien. Aqui a atmosfera já é outra, a morte é substituída por nascimento e o pesar por folia. Mahler é trocado por Smetana e ouvimos um Moldeau alegre, jovial e caloroso. Nasce Jack.
Por esta altura o filme ganha outro tom. Os assuntos cosmológicos e existenciais são postos de parte e a câmara foca-se no desenvolvimento ontogénico. Como no Amarcord, de Fellini, assistimos aquilo que serão (presumivelmente) as memórias da infância de Malick, dos seus pais, da sua cidadezeca interior e sulista, das suas idas à mercearia, do primeiro contacto com as caras do crime e da corrupção do mundo real. Eis que surge uma nova dicotomia, desta vez alegorizada pelos seus pais: “Father, Mother. Always you wrestle inside me. Always you will.”

Mr. O’Brien, simboliza o ideal conservador americano. Rigidez, patriotismo, mérito e esforço. Inspirado pelo “ex-barbeiro que hoje em dia possui mais de metade dos imóveis da cidade” e pelos desenvolvimentos tecnológicos da Pan Am (para a qual trabalharia?), O’Brien educa os seus filhos com morais inertes e baseadas no respeito. Certos momentos aterrorizantes como “Jack, do you love your father?” “Yes, Sir”, exprimem alguma desaprovação pela frieza deste método, mas as consequências práticas e a constante lembrança do negrume da sociedade apoiam-no, por outro lado, mantendo-se assim a imparcialidade e a dúvida. A Mãe, por sua vez, simboliza os valores altruístas (embora “fracos para enfrentar a realidade”) da benevolência, carinho, despreocupação e solidariedade. Apesar de Malick dar maior ênfase aos problemas derivados da influência paterna (Jack torna-se frio, cruel e iradamente revoltado – Num piscar de olho ao Toy Story vemo-lo comparado a Sid, quando prende uma rã a um mini - foguetão - um dos muitos pastiches deste filme), é o outro irmão, mais parecido com a mãe, que morre aos 19.
Mas nem todos os momentos desta parte do filme são de cariz reflexivo. Na maioria do tempo assistimos a momentos de cumplicidade entre os familiares, a momentos meramente evocativos das situações e sentimentos que melhor descrevem a vida, preenchidos por sinfonias de Brahms ou pela eterna e vital tocata e fuga em Ré Menor ou excertos do Cravo bem-temperado, de Bach.
Falando agora da prestação dos actores, pouco se-lhes pode apontar. Os seus papéis foram sempre mais passivos que activos, se bem que suficientemente expressivos e adequados. Sean Penn aparece poucos segundos, somente para florear o casting, e Brad Pitt (num papel inicialmente pensado para Heath Ledger ou Colin Farrell) esteve à altura e Jessica Chastain e as crianças idem. O grande mérito é realmente de quem escolheu e caracterizou o casting.

The Tree of Life - Gustav Klimt

“The Tree of Life” talvez peque por uma tirada menos boa, ou excessivamente melodramática, mas também não é no escasso diálogo que reside o seu cerne. Neste filme, qual sinfonia Mahleriana, assistimos a todas as sensações e emoções que compõem a vida. Passamos da realidade funesta e inquietante da morte duma criança para os fantasiosos momentos do júbilo natal e da potencialidade que tem uma vida. Sentimos o poder da arte, fruto duma criação artificial, e contrastamo-lo com a imponente e inigualável beleza natural. Viajamos do infinito ao ínfimo, do espaço à célula, do adulto ao infante. A árvore da vida é um filme fresco, quente, harmónico e avassalador. Toda a pujança da vida é pintada e reproduzida nas quase 2:30 horas que o filme ocupa que, apesar de longas, passam a correr. Tal como se diz da vida.

5/5

Q

domingo, 18 de julho de 2010

Pequena excursão pelo cinema Psiquiatrico

Adepto desta enigmática ciência, é com extremo interesse e ânimo que vejo filmes cujo tema central é a Psiquiatria.
Como tal, falar-vos-ei dos últimos filmes que vi sobre esta temática e deixarei algumas recomendações para interessados no assunto.

Spellbound (1945), de Alfred Hitchcock - Protagonizado pelo robusto icone desta geração - Gregory Peck - e pela bonita e adorável Ingrid Bergman, Spellbound é uma incursão Freudiana duma psiquiatra recém-formada ao subconsciente dum esquizofrénico amnésico, feita com o intuito de provar a sua inocência face a uma acusação de homicídio.

Com algumas cenas oníricas desenhadas pelo próprio Salvador Dali, Spellbound é quase inqualificável em termos de género, dada a mescla de acontecimentos que compõem este elaborado e astuto enredo. De Film Noir, a drama psicológico, a policial, tudo é insuficiente para categorizar esta obra-prima. Só resta mesmo uma palavra: Spellbinding.
(5/5)


Spider (2002), de David Cronenberg
- Londres, anos 80. "Spider", um esquizofrénico paranóide, chega a uma instituição psiquiátrica onde começa, sozinho, a viajar mentalmente até à sua infância, 20 anos atrás.


Nessas suas deambulações assiste aos acontecimentos que levaram ao seu estado presente, nomeadamente, à morte da sua mãe. Serão, porém, estas percepções claras e verdadeiramente ilustrativas da realidade? Spider é uma brilhante película tecida por Cronenberg e magistralmente protagonizada por Ralph Fiennes que acaba por ser um dos melhores trabalhos de ambos estes grandes senhores do cinema actual. Imperdível
(5/5)


K-PAX (2001), de Ian Softley
- A dupla Kevin Spacey e Jeff Bridges (que se encontram 7 anos depois em "The Men Who Stare at Goats") aparece aqui como paciente e terapeuta, respectivamente. Spacey afirma ser "Prot", um extra-terrestre do Planeta K-PAX, mundo em que há paz, dois sóis, auto-regeneração e teletransporte.


Inicialmente ridicularizado, Prot começa a causar sucesso no hospital à medida que vai reabilitando pacientes supostamente incuráveis, a discursar eloquentemente sobre grandes teorias teológicas e físicas e apresentar novos factos à ciência terrestre. A sua tese é tão convincente que o próprio psiquiatra chega a pôr a hipótese de ser realmente verídica...Não é nenhuma obra-prima, mas ainda assim recomenda-se vivamente.
(4.5/5)

Gaslight (1944), de George Cukor
- Um ano antes de contracenar com Peck e trabalhar com Hitchcock em Spellbound, Ingrid Bergman já se tinha deparado com outro grande mestre do cinema Noir dos anos 40: George Cukor. Felizmente para a sua versatilidade enquanto actriz, desta vez apareceu como doente e não como doutora.


Gregory Anton (Charles Boyer), aparenta ser o marido perfeito. Atencioso, presente, preocupado...extremamente preocupado...sinistramente preocupado...propositadamente preocupado? Um excelente drama psicológico e uma perfeita ilustração dos poderes da sugestão psicológica e do processo de enlouquecimento. Genial e perturbador.
(5/5)

Shutter Island (2010), de Martin Scorsese , com Leonardo Dicaprio, Mark Ruffalo, Ben Kingsley e Max Von Sydow - Como amante de cinema, alimento uma fantasia de qualquer dia vir a realizar eu próprio um filme e, sempre que me imagino a fazê-lo, é um thriller psicológico deste género. Acredito, portanto, que realizadores conceituados como Scorsese e Kubrick cheguem a uma certa altura das suas esplendorosas carreiras e ponham a hipótese de fazer algo totalmente dedicado ao seu virtuosismo técnico, onde possam criar um ambiente apenas possível na tela. Mencionei Kubrick e não foi por acaso. Acho que este filme está para o Scorsese como está o Shining para o Kubrick e, inclusive, ao mesmo nível, senão melhor.


Brilhante, mesmo! (Não incluo nesta recomendação uma sinopse porque simplesmente é impossível fazê-lo sem estragar surpresas do mais agradável que há no cinema). Shutter Island triunfa tanto na história como no som, na imagem e nas actuações. Outra obra-prima de imperioso visionamento.
(5/5)

Lilith (1964), de Robert Rossen - Last, but not least, eis um filme de que se ouve pouco falar. Protagonizado pela pecaminosamente bela Jean Seberg, Lilith (vejam a origem do nome na Wiki) é a história duma ninfomaníaca que tem um poder incomum (embora perfeitamente compreensível) sobre todos os homens que a rodeiam. Vincent (Warren Beaty), um ex-combatente que ingressa agora no hospital para trabalhar como enfermeiro e acompanhante é a sua nova presa...


Lilith é um filme que, independentemente de toda a obscuridade que o envolve, só deixa transparecer beleza. Beleza encarnada na filmagem, na história, e na assustadoramente encantadora Lilith. De todos estes o melhor e o meu preferido.
(6/5)



Lilith


Recomenda-se ainda, dentro desta temática (alguns de forma mais indirecta):

One Flew Over the Cuckoo's Nest (1975), de Milos Foreman; (5/5)

A Double Life (1947) - de George Cukor (5/5)

The Silence of The Lambs (1991), de Jonathan Demme
(5/5) - Apesar do resto da sequela (Hannibal - 2001) ser desprezível. Até perdi a vontade de ver o terceiro.

Persona, de Ingmar Bergman (5/5) - Uma obra prima absoluta.

The Shining (1980), de Stanley Kubrick (5/5)

A Clockwork Orange (1971), de Stanley Kubrick (5/5)

Moon (2009), de Duncan Jones (5/5)

Crash (1996), de David Cronenberg (4/5)


Annie Hall (1977), de Woody Allen (4/5)


Barton Fink (1991), dos Irmãos Coen (4.5/5)


Recordações da Casa Amarela (1989) (5/5), A Comédia de Deus (1995) (5/5) e já agora o último da triologia (este ainda não vi) As Bodas de Deus (1999), de João César Monteiro.

Se7en (1995), de David Fincher (4/5)

Fight Club (1999), de David Fincher (4.5/5)

Mulholland Drive (2001), de David Lynch (5/5)

American Psycho, de Marry Harron (4.5/5)


Para além de todos estes filmes sugiro que dêem uma olhadela ao programa de cinema da Gulbenkian sobre doenças mentais. Alguns deles já mencionei, outros ainda não vi, mas vou certamente fazê-lo. Eis a lista completa:

26 Maio Das Cabinet des Dr. Caligari de Robert Wiene

9 Junho Spellbound de Alfred Hitchcock

16 Junho The Snake Pit de Anatole Litvak

23 Junho Les Yeux sans Visage de Georges Franju

30 Junho Peeping Tom de Michael Powell

7 Julho Vivre sa Vie de Jean-Luc Godard

14 Julho Shock Corridor de Samuel Fuller

21 Julho Lillith de Robert Rossen

28 Julho Persona de Ingmar Bergman

4 Agosto Jaime de António Reis e Titticut Follies de Frederick Wiseman

11 Agosto Zabriskie Point, de Michelangelo Antonioni

18 Agosto One Flew over the Cuckoo’s Nest, de Milos Forman

25 Agosto Elephant ,de Gus Van Sant


Q

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Crash (1996), de David Cronenberg

Sou da opinião de que o bom crítico é aquele que avalia quantitativamente o seu objecto de uma forma totalmente imparcial, desprezando a experiência subjectiva (dentro do que é possível) e regendo-se apenas por um olhar objectivo; mas que uma boa crítica não se pode limitar aos números, sendo estes inúteis a partir da sua óbvia utilidade. Uma boa crítica deve conter um auxiliar textual onde o crítico possa explicar a avaliação numérica, contar algo de novo aos seus leitores, fazer recomendações e, acima de tudo, falar da sua experiência subjectiva tão abertamente ao ponto de esta deixar de comprometer o seu juízo crítico.
Apenas guiando-me por estas regras algo desregradas posso falar de filmes que violentam os sentidos e chocam o espírito, não deixando de, no entanto, regalar o olho e o intelecto fascinado. Eis "Crash".


Baseado no romance homónimo de 1973 de J.G.Ballard e realizado em 1996 pelo canadiano David Cronenberg, um dos maiores nomes da Horror-Sci-fi da história do cinema, criador de chocantes thrillers como Stereo(69), Scanners(80), The Fly (86), Dead Ringers (88), M.Butterfly(93) e mais recentemente eXistenZ (99), Spider (02) e A History of Violence (05), Crash, não menos gore que o resto dos seus filmes (nem que seja um gore psicológico), conta-nos a história de um grupo de indivíduos que apenas consegue obter prazer sexual ao observar ou experimentar acidentes de automóvel.

Protagonizado por James Spader (o hilariante Alan Shore da série Boston Legal) e secundado por Holy Hunter, Elias Koteas, Deborah Kara Unger e Rosanna Arquette, este filme, muito pobre no que diz respeito ao enredo, podia ser traduzido em pornografia para parafílicos, neste caso, para pessoas com os mesmos desvios sexuais que aqueles que nele entram. Mas será que Cronenberg quer saber do enredo para alguma coisa? Não.
Aquilo que o realizador tenta fazer não é contar uma história interessante sobre pessoas com esta ou aquela demência. É fazer-nos sentir aquela obsessão e guiar-nos por um mundo totalmente novo. Um mundo possível ainda que inverosímil em que o Eros e o Tanatos freudianos se misturam e atingem um cúmulo aparentemente irreal para o homem são; para o homem comum; normal.
A mestria técnica do realizador, a possante e hipnótica banda sonora e a entrega total dos actores nesta obra de arte do submundo criam no espectador uma sensação de desconforto constante a par duma curiosidade pungente. Não sabemos como reagir perante um erotismo tão familiar ao mesmo tempo que distante, chocante e até mesmo devasso. Cronenberg cria em nós uma mescla de sensações que insere este filme exactamente na classe daqueles a que me referia na introdução deste post. Filmes que embora não possamos realmente "gostar", podemos e devemos sempre admirar.
Crash é um brilhante estudo socio-psicológico que apenas peca pelo excessivo arrastamento de algumas cenas e repetição de outras. Chega a uma altura em que o nosso desconforto não se deve apenas ao conteúdo do filme mas também ao fastidio provocado pelo mau enredo.

Vaughan (Elias Koteas): "The car crash is a fertilizing rather than a destructive event."

Nota Final: 4/5

Q

quinta-feira, 25 de março de 2010

Smultronstallet




Na sequência do Post anterior, decidi fazer o mesmo para o meu último trabalho: Morangos Silvestres, do Ingmar Bergman.

Ficha Técnica:

Realização: Ingmar Bergman
Guião: Ingmar Bergman
Cinematografia: Gunnar Fisher
Elenco: Victor Sjöström (Dr Isak Borg); Bibi Andersson (Sara) ; Ingrid Thulin (Marriane Borg); Gunnar Björnstrand (Evald Borg); Jullan Kindahl (Agda); Folke Sundquist (Anders); Björn Bjelfvenstam (Viktor); Max Von Sydow (Henrik Åkerman)
Ano de lançamento: 1957
País de Origem: Suécia
Cor: Preto e Branco
Idioma: Sueco
Duração: 91 minutos


Resumo:
Quando Isak Borg (Sjöström), um viúvo, solitário e envelhecido médico atinge o 50º ano desde o início do seu mester, é feita uma celebração em sua honra, em Lund. Marriane (Ingrid Thulin), sua nora, ao saber que Isak vai de carro, decide acompanhá-lo.
Durante a viagem, Marriane não cessa de criticar a conduta do seu sogro. Desde repreensões concernentes ao seu egoísmo e narcisismo a julgamentos quanto á sua insensibilidade e pedantismo, Isak não é poupado.
À medida que a viagem avança, Isak e Marriane começam intimar-se um pouco mais, expandindo a sua relação de sogro-nora a algo mais caloroso. O médico tenta confidenciar-lhe preocupações que o atormentam e decide mostrar a Marriane a casa de férias da sua infância, fazendo um pequeno desvio na rota original.
A partir desta parte a temporalidade do filme divide-se em 3: As memórias de Isak, o presente e a sua consciência.
A sua primeira memória remonta ao tempo em que Isak era jovem e nutria uma paixoneta pela sua prima Sara (Bibi Andersson), com quem estava secretamente enlaçado. Invisível para os figurantes dos seus devaneios, Isak assiste à festa de anos do seu tio Aron (Yngve Nordwall), especialmente aos descuidos infiéis de Sara com o seu irmão [de Isak], Sigfrid (Per Sjöstrand).
De repente, uma voz estranha acorda-o do seu universo interior. Sara (também interpretada por Bibi Andersson), uma rapariga em muito semelhante ao seu primeiro amor (não só no nome), juntamente com dois rapazes - Viktor (Björn Bjelfvenstam) e Anders (Folke Sundquist), pedem boleia até Lund.
A viagem está animada e os Borg estão entusiasmados com a folia dos jovens. Porém, num acto altruísta, Isak oferece boleia a um casal que acabara de sofrer um despiste e uma consequente capotagem. Irascíveis e irritantes, os conjugues Alman (Gunnel Broström e Gunnar Sjöberg) começam a discutir e a bater-se perante os outros viajantes, importunando-os. Marriane, incomodada, expulsa-os do carro e a viagem continua.
Depois de um agradecimento sincero de Herik Akerman (Max Von Sydow), um gasolineiro por quem o Dr. Isak Borg fez muito, e de um vigoroso almoço filosófico, Isak decide visitar a sua mãe, algo que não fazia havia muito.
Aqui o filme volta a passar para outro plano, desta vez o da mente de Isak, que adormece. Depois do primeiro sonho (passado no início do filme mas mencionado apenas agora por motivos de estruturação desta sinopse alargada), em que Isak se vê sozinho numa ruela deserta e desconhecida, totalmente perdido e desorientado, até que aparece uma carroça arrastando um caixão com ele próprio lá metido; o protagonista tem um segundo sonho; este ainda mais perturbador:
O sonho começa com Isak a contemplar, aterrorizadamente, Sara e o seu irmão Sigfrid, já adultos, juntos e felizes. A sua amada diz-lhe que tem de a esquecer e perdoar, deixando os
fantasmas do passado para trás. Subitamente, o ambiente que o circunda muda e encontra-se numa sala de aulas universitária, prestes a fazer um exame, levado a cabo pelo supra mencionado Mr. Alman – um dos conflituosos conjugues. Este exame é feito à sua capacidade de se avaliar a si próprio psiquicamente (metaforizado através de exames médicos a outros pacientes, que Isak faz erroneamente). A conclusão é a de que é incapaz de o fazer. – É inconsciente, tendo, portanto, chumbado. O examinador diz-lhe então que é, entre outras coisas, amotivo, indiferente e egoísta. Citando um excerto da acusação: “Mr Borg é culpado de ter culpa”. Este exame pode também ser interpretado como um “teste” à personalidade de Borg, mas analisaremos isso mais à frente, noutra secção deste trabalho.
Mais tarde o examinador leva-o a assistir à cena que talvez tenha mais marcado toda a sua vida. A infidelidade da sua mulher Karin. Assistimos também a Karin tecer uma panóplia de vitupérios dirigidos ao seu marido, acusando-o de frieza, cinismo e hipocrisia, dando especial ênfase à sua incapacidade de perdoar.
Voltando à realidade, assistimos agora ao paroxismo de intimidade confidencial entre Marriane e Isak.
Primeiro, a nora aceita ouvir os sonhos do sogro (algo que tinha recusado anteriormente). Segundo, Marriane conta-lhe o seu maior segredo: Que esteve grávida e que Evald (Gunnar Björnstrand), o seu marido (um afirmado niilista existencial), a obrigou a abortar, sob o pretexto de que trazer uma criança ao mundo só ia dar mais sofrimento a ele e ao bebé. Marriane, contudo, está ainda grávida, e acompanhou Isak até Lund para dizer ao seu marido que rejeita as suas condições.
Finalmente chegam a Lund e a cerimónia corre como era esperado. É noite de festa mas Isak, dados os seus setenta e cinco anos, tem de se deitar cedo. Despede-se ternamente de Sara e dos seus acompanhantes, perdoa a dívida do filho, libertando-se da fama de avarento e medita sobre tudo o que se passara naquele dia. Fecha os olhos, volta ao seu mundo fantástico onde encontra a meiga Sara que lhe diz: “Isak, meu querido, já não há mais morangos silvestres”. Sorri. Abre os olhos. Morre.

Análise Crítica

Nesta análise crítica pretende-se focar o filme sob três pontos de vista diferentes:
- Tecer especulações quanto às oscilações gnósticas do realizador, dando principal ênfase às suas crenças, convicções e dúvidas respeitantes a assuntos de cariz esotérico e existencial, através duma análise sintética aos filmes “O Sétimo Selo”, “A Fonte da Virgem” e, mais detalhadamente, “Morangos Silvestres”, dado o seu intimo entrelaçamento temático.
- Interpretar o filme “Morangos Silvestres” dum ponto de vista psicológico, filosófico e explicativo.
- Criticar os aspectos técnicos do filme, ao nível da realização e actuação

Bengt Ekerot (esquerda) e Max Von Sydow (direita) em “O Sétimo Selo”

Cingindo-me aos filmes que vi de Bergman, a primeira questão metafísica que vi o realizador colocar é posta em “O Sétimo Selo”, metaforizada através do jogo de xadrez mais famoso da história do cinema entre Antonius Block (Max Von Sydow, um dos actores fetiche de Bergman, protagonista da Fonte da Virgem e secundário n ‘ Os Morangos Silvestres) e a Morte (Bengt Ekerot). Reduzindo muito aquilo de que o filme trata, a conclusão de Bergman é simples: Independentemente daquilo em que creiamos, do que façamos ou tentemos fazer, a Morte é inevitável. Mais vale conformarmo-nos e aceitar o que nos está predestinado do que suar as estopinhas a tentar combater esse facto. Partindo desta conclusão, Bergman, outrora dúbio quanto à inevitabilidade da morte, pergunta-se “Se vou morrer, como posso fazê-lo feliz, dando sentido à minha vida?” Ou, por outras palavras, “Qual é o verdadeiro sentido da vida?”. Para responder a esta questão analisaremos todo o trajecto de Isak, tanto no seu universo interior como no mundo físico que o envolve, na sua viagem de Estocolmo para Lund.
Logo no princípio do filme, Isak Borg começa por se descrever a si próprio como alguém adverso a relações sociais, o que o fez distanciar-se de qualquer contacto interpessoal, cingindo-se a pouco mais que si próprio. Isak considera-se, portanto, voluntariamente solitário. Assistimos depois a uma parafernália de críticas feitas pela sua nora Marrianne, que, como já vimos, o acusa de egoísmo, avareza, hipocrisia e dogmatismo. Inconsciente de ser tais coisas, o médico interroga-se: “Terá ela razão?”. Apercebendo-se da proximidade do seu fim (vaticinado através de sonhos fatídicos) e ponderando algumas das críticas da sua nora, Isak decide que é necessário redimir-se; Encetar uma odisseia interior com o propósito de apanhar todos os “Morangos Silvestres” da sua consciência, caso contrário não morrerá descansado.
Qual é, então, o primeiro passo a tomar nesta demanda pela redenção? – Sara. Durante toda a sua vida Isak esteve rancoroso para com ela e o seu irmão Sigfrid. Não estará na altura de esquecer… aceitar… perdoar? Isak revê esse triângulo amoroso na amistosa Sara e os seus dois pretendentes – Viktor e Anders, substitutos dos vértices originais Sigfrid e Isak.
Estando a consciencialização do primeiro passo concluída, por onde enveredar de seguida? Não é preciso procurar muito. A instável e conflituosa relação do casal Alman traz-lhe à memória a sua relação com Karin – a sua justificadamente infiel ex-mulher.
Seguidamente, ao fazer uma terceira paragem para visitar a sua envelhecida mãe, Isak redime-se da falta de contacto que havia mantido com ela, e dá outro passo na sua aceitação do casamento Sigfrid-Sara, ao pedir à mãe para lhe dar uma fotografia dele com o irmão.
A grande reviravolta psicológica e emocional de Borg dá-se no seu segundo sonho, pormenorizadamente relatado no resumo acima.
É por esta altura que Isak se começa a aperceber que não foi ele quem se afastou voluntariamente do resto das pessoas, mas o oposto. A aversão era recíproca. Karin traiu-o pela sua frieza, indiferença e hipocrisia, sendo ele o principal culpado pelo desenlace trágico da sua atribulada relação. Sara era jovem e não tinha qualquer tipo de vínculo bem definido com Isak, o que torna inadmissível todo o seu ressentimento e incapacidade de perdão.
Resumindo utilizando citações do filme, Isak falhou no cumprimento da primeira máxima dum médico: “ O principal dever de um médico é pedir perdão”.
Sobre este sonho pode dizer-se ainda um pouco mais, no domínio das interpretações pessoais e subjectivas. Mr Alman, o examinador, pode ser visto, dum ponto de vista católico, como S.Pedro, guardião das portas do céu, que procedia a uma averiguação da idoneidade de Isak para transpor ou não a porta que este guarda. Por outro lado, o examinador pode ser visto como o Super-Ego de Borg, que tenta corrigir os desvios da conduta do protagonista quanto ao caminho necessário a morrer em paz.
À medida que o filme avança, as convicções de Isak quanto ao sentido da vida vão-se transformando. Inicialmente partilhante das ideias do seu filho, de que a vida em si é desprovida de sentido e de que apenas a devemos viver por viver, desfazendo-nos de qualquer tipo de dependências que nos obriguem a vivê-la mesmo quando já não o quisermos (admitindo uma espécie de Niilismo existencial), Isak percebe que a vida deve ter como objectivo o alcançar de uma serenidade interior, um estado mental livre de remorsos e
rancores mas repleto de boas e louváveis memórias. Que o verdadeiro sentido da vida é o de um homem poder chegar ao último dia da sua vida consciente de que ajudou os outros, de que era querido pelos que lhe são próximos (os sinceros agradecimentos do gasolineiro e os amáveis elogios e amistosas declarações da jovem Sara - “Pai Isak, fica sabendo que é a ti que te amo. Hoje, amanhã e para sempre”, bem como o evoluir da sua relação com Marriane; não esquecendo a sua enternecedora relação com Agda, sua empregada, fizeram-no compreender o que era realmente essencial e chegar a esta conclusão), de que é internacionalmente respeitado, de que fez, no fundo, coisas boas, libertando-se das más.
Findando o seu percurso de renovação espiritual ao soltar-se da fama de avarento, perdoando a dívida de Evald, Isak atinge o estado que ambicionara, podendo, finalmente, morrer em paz.
Outro problema presente neste filme é o da existência de Deus, mais tarde abordado pelo realizador em “A fonte da Virgem”.
Através dos personagens Viktor e Anders, Bergman personifica as suas próprias dúvidas quanto a este tópico. A sua inclinação é, contudo, óbvia. Através da posição de Isak e de todo o providencialismo inerente a esta película, o realizador demarca a sua própria opinião. Para além de todas as alusões a Cristo e à religião católica (no seu sonho, Isak fura a mão com um prego, no caminho para a redenção), todas as coincidências ocorridas durante a viagem (aparecimento de uma rapariga idêntica a Sara num caso idêntico ao seu e do seu irmão, de um casal semelhante a Karin e a ele próprio) criam um paralelismo demasiado intimo para ser apenas coincidência, entre a sua viagem espiritual e física [de Estocolmo para Lund]. Essa excessiva intimidade sugere que terá havido uma intervenção divina em todo este dia, como se Deus os tivesse enviado propositadamente para ajudar Isak no seu caminho.
Três anos mais tarde, Bergman volta a este problema na “Fonte da Virgem”, onde se questiona se fará sentido acreditar em Deus quando, mesmo levando uma vida virtuosa e dedicada a Ele, as piores coisas possíveis acontecem. Volta, contudo, a reafirmar a sua posição gnóstica no final do filme, numa deslumbrante cena em que Deus se manifesta milagrosamente perante os protagonistas.

“A Fonte da Virgem”

“Morangos Silvestres”, contudo, não se limita a expor questões filosóficas e psicológicas de forma nua e crua. Há uma componente extremamente heartwarming, até mesmo tocante, do princípio ao fim. Desde a evolução enternecedora da relação entre Isak e a sua nora às discussões amorosas e afáveis entre Dr. Borg e Mrs. Agda, o filme caracteriza-se por uma ternura capaz de sensibilizar o mais frio dos espectadores.
Provavelmente no papel da sua vida (que por acaso foi o último), o actor e realizador sueco Victor Sjöström faz uma das interpretações mais brilhantes e comoventes de toda a história do cinema universal (mais uma vez, cinjo-me ao que vi – apesar das críticas mais exigentes concordarem). A para mim até então desconhecida, embora lindíssima Ingrid Thulin mostra como se pode demonstrar frieza, dramatismo e brandura sem o mínimo de over ou
underacting, no mesmo filme. Gunnar Björnstrand, este já mais característico do espólio habitual de Bergman, faz justiça à predilecção do realizador, demonstrando-se genial.
Quanto aquela que é provavelmente a minha actriz preferida, Bibi Andersson, pouco tenho a dizer. Apesar de lhe lamentar o talvez excessivo dramatismo na encarnação da Sara das memórias de Borg, o seu entusiástico e caloroso papel ao representar a Sara “moderna” redime qualquer erro que possa ter cometido e justifica, desta vez, a minha idiopatia.
Passando para o campo da realização e componente estética do filme, digo apenas que me sinto quase ridículo a tecer julgamentos sobre um dos cineastas mais geniais de todos os tempos. Todo o filme é um exemplo perfeito de mestria técnica e dirigista, e nem a ausência do habitual cinematógrafo Sven Nykvist (substituído com excelência por Gunnar Fisher) tira a perfeição a esta obra-prima.
Provavelmente um dos melhores filmes de Bergman e de sempre.

Nota final: 5/5

Q

Gentleman's Agreement



Este Post tem como base um trabalho feito para a minha escola, na disciplina de Filosofia e Cinema, pelo que tem, portanto, um formato diferente daquilo que costumo fazer aqui.

Ficha Técnica:

Gentleman’s Agreement
A luz é para todos
Direcção: Elia Kazan
Guião: Moss Hart (Baseado no romance de Laura Z. Hobson)
Elenco: Gregory Peck (Philip Green); Dorothy McGuire (Kathy Lacey); John Garfield (Dave Goldman); Celeste Holm (Anne Dettrey); Anne Revere ( Mrs Green); June Havoc (Elaine Wales); Albert Dekker (John Minify)
Ano de lançamento: 1947
País de Origem: Estados Unidos da América
Cor: Preto e Branco
Idioma : Inglês
Duração: 118 minutos

Resumo:

Viúvo e recém-chegado a Nova Iorque, o jornalista Philip Green (Gregory Peck) é requisitado pelo seu editor para escrever um artigo sobre Anti-semitismo. Inicialmente, Philip carece de ideias para a realização deste projecto, mas depressa percebe que ao fingir ser Judeu poderá escrever um artigo mais preciso e original, visto que seria vítima deste tipo de discriminação duma forma mais directa. O seu editor acha a ideia interessante e Philip é introduzido na sociedade Nova-Iorquina sob o véu do judaísmo.
Certo dia, durante uma festa, Philip é apresentado a Kathy Lacey (Dorothy McGuire), a quem, descaindo-se, revela a sua verdadeira identidade. Pouco tempo depois iniciam uma relação amorosa, onde se centrará grande parte da história.
É então que Philip, totalmente anti-intolerância, começa a descobrir que a revista para a qual trabalha, cuja fama é de ser liberal, é mais preconceituosa do que o que aparenta ser: Descobre que a sua secretária (June Havoc) é judia mas que, tendo tido a sua candidatura rejeitada aquando da sua primeira tentativa de obter emprego pelo facto do “lugar já estar preenchido”, volta a concorrer sob o pseudónimo de Elaine Wales, um nome americano, obtendo imediatamente o lugar. Em adição a isto, (numa cena memorável, comentada mais adiante neste trabalho) durante um almoço entre vários jornalistas ditos liberais, Philip sente-se discriminado pelo facto de “ser” judeu.
Por esta altura aparece em Nova Iorque Dave Goldman (John Garfield), um amigo de infância de Philip que é realmente judeu. Apesar de estar satisfeito com o trabalho do seu companheiro, Dave aconselha-o a ter cuidado. A revolta contra a intolerância pode ser perigosa.
Com o avançar da história o jornalista torna-se alvo de inúmeros casos de discriminação. Cancelamento de consultas médicas e impedimento de estadias em hotéis são alguns exemplos menores daquilo que vitimiza Philip. Contudo, o caso torna-se mais sério quando é o seu filho a ser vítima de injúrias desta índole. Os colegas, na escola, chamam-lhe “Porco Judeu” e, numa cena extremamente tocante, Tommy (Dean Stockwell) – o filho – queixa-se ao pai, embebido em lágrimas, por não perceber o porquê daquele tratamento.
Ao longo do tempo, Philip vai detectando em Kathy alguns sinais de anti-semitismo dissimulado que o transtornam. Cenas como a indisponibilidade de Kathy para ajudar Dave a combater a discriminação de que é alvo, as tentativas de reconforto a Tommy dizendo-lhe para não ficar chateado porque ele na realidade não era um “Porco Judeu”, que estava apenas a fingir; enfim, a inércia de Kathy perante a discriminação e todo o conformismo envolvente nas suas acções e atitudes fazem com que Phil cancele o casamento (estavam noivos) e acabe a relação. Revoltado, Phil decide abandonar Nova Iorque assim que o artigo seja publicado.
É publicado. É um sucesso.
Estava já Phil preparado para abandonar a cidade quando Kathy, depois duma longa conversa com Dave, se apercebe da estupidez dos seus actos e do quão horrível é, de facto, a intolerância. Pede desculpa a Phil e este aceita. Reconciliam-se e o filme acaba.

Análise Crítica


Após a leitura deste resumo ou a visualização deste filme, facilmente se percebe que o tema sobre o qual esta peça cinematográfica gira é a intolerância; mais concretamente o anti-semitismo. Por esta altura (finais da segunda Grande Guerra) os Estados Unidos eram um abrigo para muitos judeus, que, com medo da perseguição Nazi, decidiram exilar-se na “Terra das Oportunidades”. Percebe-se então a principal origem da grande afluência judaica para os Estados Unidos da América. Ora, como em todas as migrações, o choque cultural é algo inevitável, o que leva as mentes mais retrógradas a acabar por catalogar a cultura migrante como “invasora” e, por conseguinte, censurá-la e discriminá-la.
Porém, aquilo que para mim é mais curioso e atraente neste filme é o facto de não tratar do Anti-Semitismo radical, mas sim do dissimulado. Estamos já todos fartos e cientes do problema abordado em filmes sobre grupos Neo-Nazis ou racistas radicais. Está errado, não devemos fazer e devemos combater. Este filme não é nada disso. Os grandes problemas aqui tratados são algo de muito mais inconsciente, comum e actual: A hipocrisia social, o conformismo perante a discriminação e a indiferença que afecta uma grande maioria.
Apesar de já ter visto este filme há cerca de quatro meses, uma das cenas descritas acima (creio ter mencionado que lhe voltaria a pegar mais tarde – agora) continua visível na minha cabeça duma forma tão clara como da primeira vez que a vi. Absolutamente fascinante:
-Durante um almoço, Philip e o seu projecto sobre Anti-Semitismo são apresentados perante os membros da revista. Inicialmente recebido com copiosa cortesia, Phil senta-se e diz algo como “acho que este trabalho é importantíssimo, independentemente do meu próprio judaísmo”. Todos os convidados se calam, baixam os olhos e começam a comer. O silêncio pesa sobre a atmosfera da sala, que se torna lúgubre e taciturna.
Começam aqui as críticas de Kazan (ou da escritora Laura Hobson) aos grupos americanos pseudoliberais. A repentina mudança de atitude dos jornalistas outrora entusiasmados com a chegada de Phil demonstra perfeitamente o fingimento exercido por todas estas figuras. Um óptimo caso para ilustrar a hipocrisia que afecta esta sociedade aparentemente “ultra-civilizada”.
No que diz respeito ao conformismo, creio que esse problema é personificado através da personagem Kathy. Os contínuos pedidos de desistência a Philip, a constante imobilidade diante situações-problema e a passividade perante comportamentos intolerantes que esta personagem experiencia no decorrer do enredo, conjugam-se na personagem-tipo pretendida com esta protagonista feminina. O típico conformista.
Passando agora à análise do título, acho que a podíamos dividir em duas vertentes: O original e o traduzido.
Ao contrário de “Gentleman’s Agreement” (acordo entre cavalheiros), “A luz é para todos” é um título facilmente inteligível e perfeitamente adequado. A ideia da “luz ser para todos” metaforiza a igualdade a que todos temos direito enquanto seres humanos. Uma abolição de culturas ou de fronteiras no que diz respeito à distribuição de direitos. Não obstante, no que diz respeito ao título original; ou fui eu que não percebi muito bem ou o título não se adequa tanto. O único “acordo de cavalheiros” a que se assiste no filme (creio) é realizado entre o protagonista e o seu editor, quando Philip se compromete a fingir ser Judeu. Podemos também interpretar este título como um acordo realizado entre o jornalista e a sua
própria consciência de que não iria desistir desta luta pelos direitos dos Semitas, ou um acordo tácito realizado entre os membros da sociedade americana, comprometendo-se a não falar sobre o assunto. Esta interpretação é, contudo, algo rebuscada para o meu gosto. Todavia, posso sempre estar errado e não ter percebido o título.
Enquanto filme, Gentleman’s Agreement é irrepreensível. Toda a direcção e escolha de actores, selecção de cenários, diálogos e cenas não têm qualquer erro a apontar. Kazan mostrou-se ser um realizador digno da fama que tem e Gregory Peck não teve problemas em fazer jus à importância do seu personagem. Aliás, a palavra-chave é mesmo essa. Importância. “A luz é para todos “ não foi um filme feito para ser belo, para ser louvado como uma obra-prima do cinema americano nem para se destacar como um clássico. É simplesmente um filme necessário cuja importância jaz no efeito que esta mensagem tem no espectador.

Nota Final: 5/5

Q

sábado, 13 de março de 2010

Bach na Gulbenkian

Johann Sebastian Bach (1685-1750)

Depois dum majestosamente descalibrado Schiff e dum entusiasticamente virtuoso Yoyo-Ma, o auditório da Gulbenkian foi palco duma sucessão tripla dedicada à música antiga, mais especificamente a Bach. Desta forma, o ensemble Café Zimmermann tocou, em dois dias, 7 e 11 de Março, o integral dos concertos brandeburgueses (1-6) e dois concertos do mesmo compositor: Concerto para Cravo em Fá menor e Concerto para dois Violinos em Ré menor. Andreas Staier, por outro lado, tocou as 32 Variações Goldberg, BWV 988, no cravo, a 9 de Março.

Andreas Staier

Principiando pela exibição solista, creio ser pertinente introduzir um pequeno parêntesis sobre a peça em questão:
- Aquando da sua estadia em Leipzig, por volta de 1741, Bach, por encomenda dum Conde que sofria de insónias, compôs um conjunto de 30 variações (e uma ária repetida no início e fim da peça, servindo de base para todo o resto), com o intuito de o entreter nessas noites em claro. Como o conde tinha o seu próprio cravista, um jovem de 14 anos chamado Goldberg, Bach achou por bem atribuir o seu nome à peça que lhe era dirigida, nascendo, então, as Variações Goldberg, homónimas do seu primeiro e original intérprete.
Actualmente as variações Goldberg são tocadas também no piano, sendo Glenn Gould o intérprete que as consagrou neste instrumento, fazendo-o em 1955 para a Columbia Records, numa gravação que lhe impulsionou a carreira e repetindo a graça em 1981 para a Sony, com uma interpretação quase duas vezes mais lenta. Recomendo vivamente a segunda de Gould e a de Schiff (Decca Originals) a qualquer apreciador de Bach.



Findada esta breve introdução, falar-vos-ei agora do concerto que me comprometi a comentar. Habituado ao piano, nunca tinha ouvido uma rendição integral desta peça no cravo, tendo ido para o auditório com expectativas divididas quanto a esta peça: Por um lado, prefiro Bach tocado no piano que no cravo; por outro, as Variações Goldberg são provavelmente a minha peça preferida de Bach para um instrumento de teclas…
Independentemente das minhas ânsias, o concerto começou e Staier definiu na ária imediatamente o tempo que iria demarcar o resto das variações. Marcando algo não tão lento como a segunda gravação de Gould mas não tão rápido como a primeira, Andreas presenteou-nos com um meio-termo agradável e equilibrado, ao mesmo tempo que pessoal e expressivo. Toda a peça foi fluindo com naturalidade, não divergindo muito da sua versão no piano, até à 8ª variação, onde começou a principal disparidade entre a versão cravística e a do seu sucessor evolutivo. Aqui o intérprete passou a tocar a peça em dois teclados (verticalmente sobrepostos) dando uma dinâmica às variações impossível de atingir com o piano. É também de notar alguns efeitos que nunca tinha ouvido serem feitos (ainda não sei como) com o segundo teclado, tornando esta peça ainda mais polifónica do que já era.
É também de notar (apesar de com alguma infelicidade) o comportamento lastimável da plateia da Gulbenkian, que parece não se curar. As constantes tossidelas entre os andamentos (e não nos apogeus sonoros, como é recomendado) têm um efeito ainda mais notório na presença de solistas, o que até levou Andreas Staier, demonstrando um sentido humor cáustico, a tirar um rebuçado para a tosse do bolso a meio do concerto e ingeri-lo perante todos os seus assistentes.

Café Zimmermann

Passando agora para os dias 7 e 11, farei também, à semelhança do parágrafo anterior, uma pequena introdução concernente às peças em questão, e, desta vez, também aos seus intérpretes.
Formado em 1998 por Pablo Valetti (violinista) e Céline Frisch (cravista), o ensemble Café Zimmermann é uma formação orquestral cuja quantidade de músicos varia entre os 6 e os 25. Dedicado especialmente à música antiga, este grupo foi buscar o seu nome ao Café de Gottfried Zimmermann, situado na Rua de Santa Catarina, em Leipzig, que no século XVIII acolhia concertos semanais do Collegium Musicum, um grupo fundando por Telemann e dirigido por Bach entre 1729 e 1739.
260 após a morte de Bach, o ensemble Café Zimmermann realizou esta sessão dupla no auditório da Gulbenkian tocando integralmente os concertos de Brandeburgo. Concluídos em 1721, estes 6 concertos foram criados com o intuito de agradar ao príncipe Christian Ludwig, margrave de Brandeburgo – um douto coleccionador de música.
Provavelmente as obras concertantes mais famosas de Bach, os concertos Brandeburgueses requerem uma interpretação digna da magnitude da peça em questão, o que obriga os executantes a tocar com uma maviosidade pertinaz.
Felizmente, foi exactamente isso que o ensemble Café Zimmermann fez desde o princípio do primeiro concerto a ser tocado (nº4), logo no dia 7. Pablo Valetti e todos os outros músicos atribuíram a esta peça a tessitura adequada à execução de peças barrocas, e diga-se também que o uso de instrumentos antigos (viola de gamba e violone) só veio enaltecer a óptima prestação do grupo. Sobre o concerto de cravo em fá menor, que sucedeu a primeira peça, parece-me adequado dizer ter sido o ponto alto da noite. A cravista Céline Frisch garantiu que o seu papel na orquestra não passava ao lado dos olhos dos espectadores, que, no fim da peça, a aplaudiram correspondentemente.
Seguiram-se os concertos nº6 e nº2 que, à semelhança dos outros, passaram sem qualquer erro a apontar.
Passando agora para o dia 11, é com infelicidade que afirmo que os músicos não mantiveram sempre ao nível a que nos acostumaram dia 7. O inovador concerto nº5 foi iniciado sem qualquer tipo de animosidade e os músicos tornaram a primeira parte da peça algo inexpressivo e até mesmo fraco. Contudo, após o virtuoso capriccio do cravo protagonizado novamente por Frisch, a orquestra ganhou um novo estro, o que compensou a falha inicial. A segunda peça, concerto para dois violinos em Ré menor, solada por Valetti e Plantier, esteve ao nível do que assistimos no primeiro dia, indo os justos aplausos desta vez para os violinistas. Seguiu-se aquele que é talvez o mais famoso concerto Brandeburguês – o terceiro – que foi executado com a vivacidade que o caracteriza e lhe é necessária. No mesmo concerto, o contraste entre o segundo andamento (um adágio que tem apenas dois acordes – o mais curto da literatura musical) foi cuidadosamente demarcado do resto da peça, mas ao mesmo tempo bem inserido, o que retira à peça a estranheza que por vezes os músicos erradamente lhe conferem.
Finalmente, o ensemble Café Zimmermann tocou o concerto nº 1 – o mais elaborado dos seis. Todas as 7 partes deste concerto (o quarto andamento está dividido em 4 partes) foram alternadas com a riqueza tímbrica e tonal obrigatórias a uma boa execução, o que fez com que os Zimmermann fechassem esta série barroca em grande.

Nota final : 4.5/5

Q
 
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