sexta-feira, 11 de outubro de 2013

A Banalidade do Mal

Quase dois anos depois, decidi voltar a pôr aqui alguma coisa. Mas isto não significa que daqui venha uma onda de assiduidade. Oh no....


Nesta semana o meu cinema focou-se na perspectiva alemã do Nazismo e no fundamento sociopsicológico dos regimes autoritários. Para além de interessantes, todos estes filmes coincidem na extrema importância das suas análises, pois é na compreensão da génese dos fenómenos passados que reside o poder de evitar reproduções futuras. Neste caso específico este entendimento é imperativo, dado que foi exatamente a incapacidade de formular juízos críticos e independentes que possibilitou que tamanhas barbaridades fossem banalizadas ao ponto de se tornarem “Normais” e massivas. Aliás, como alguns autores sugerem, foi o acriticismo e neutralidade, não a maldade, que causaram o holocausto.

“I luoghi più caldi dell'inferno sono riservati a coloro che in un periodo di crisi morale si mantengono neutrali “-Dante Alighieri, in Inferno.

Der Untergang – A Queda: Hitler e o fim do Terceiro Reich. (2004), de Oliver Hirschbiegel

Este filme, tão cinzento de estética como de tema, relata os últimos dias de Hitler e dos seus fieis mais íntimos. Dá-nos uma imagem deprimente da atmosfera cultivada entre os altos mandatários do partido Nazi e do desvario mental que movia o homem que moveu milhões. Abril de 1945, passado quase integralmente num bunker numa Berlim destruída e prestes a ser invadida pelos Russos, assistimos ao fosso decadente que o terceiro Reich cavou antes de finalmente cair. 
Bruno Ganz é notável como Hitler e Hirschbiegel dota ao filme uma atmosfera tão crua e desumana que podemos, mais que observar, sentir a angustia inerente  a toda a situação. Um filme a não repetir.


Das Experiment – A experiência (2001), de Oliver Hirschbiegel.

Baseada na famosa “Stanford Prison Experiment” (quantas vezes não terá sido citada para criticar a praxe académica), Das Experiment simula, através de voluntários,  os efeitos psicológicos de desempenhar papéis de autoridade e submissão. 10 voluntários são sorteados para fazer de guarda, 10 de prisioneiro. Durante duas semanas cada um tem que cumprir o seu papel com aquilo que supõe ser o maior realismo e seriedade possível, caso contrário não recebe os 4000 mil marcos prometidos.
Medíocre a vários níveis (especialmente nas side-stories incorporadas ao protagonista), este filme, contudo, é eficaz na chamada de atenção que faz ao apego ao role-playing e à desumanização sofrida pelos seus executantes. Os guardas rapidamente aproveitam o novo “poder” para sobrecompensar a sua embaraçosa condição pessoal e quando os abusos descarrilam não há oposição dentro do próprio grupo, já que todos temem perder o seu lugar privilegiado.  Já os prisioneiros mostram-se cada dia mais complacentes, submissos e destituídos de individualidade. Mesmo com a possibilidade de revolta, a despersonalização é tal que se volvem impotentes. Como bem nos sugeriu a guia de visita em Auschwitz, “Já alguma vez pensaram porque é que os Judeus não se revoltaram? Afinal de contas, eles não tinham nada a perder! Não era tão simples, tão fácil? Tão evitável?.....Será?”


Hannah Arendt (2012), de Margarethe Von Trotta

Este filme biográfico, provavelmente o melhor (sem dúvida o mais importante) da série aqui apresentada, mostra-nos um período da vida de Hannah Arendt (e de forma dispensável por tão superficial, resquícios da sua relação com Heidegger) na qual se manteve forte e convicta da sua expressão individual não obstante as adversidades.
Judia, filósofa e ensaísta,  é no papel de jornalista que viaja de Nova Iorque, onde vive e lecciona alemão na universidade, a Israel para assistir ao julgamento de Adolf Eichmann, tenente-coronel da SS, um dos maiores responsáveis da logística necessária ao transporte de judeus para os guetos e, por fim, campos de concentração.
Contrariamente às expectativas, não foi o habitual arquétipo do Nazi – um ser cruel, temível e dominante – que Hannah encontrou. Antes, um homem banal, comezinho, despersonalizado e totalmente submisso a uma ideia pela qual nem nutria grandes afeções pessoais. Quando interrogado se mataria os próprios pais se se provassem traidores ao Reich, Eichmann responde afirmativamente, pois tinha jurado fidelidade ao Fuhrer. Hannah Arendt conclui que Eichmann não é mais que um burocrata, uma vítima dum sistema que promove a acefalia e o acriticismo, por muito bom que fosse no seu mester. E que, tal como como Eichmann, não foi o Anti-semitismo mas esta “banalização do mal” que mobilizou a maioria dos alemães a aquiescer o holocausto.
De volta a NY já com o artigo publicado, Arendt tem quase toda a comunidade judaica contra si. Enviam-lhe ameaças de morte, convidam-na a abandonar o seu posto na faculdade, insultam-na publicamente e até mesmo velhos amigos lhe deixam de falar. Para além do marido, dos alunos e de poucos íntimos, ninguém a apoia. No entanto, mesmo perante estas contrariedades extremamente convidativas à resignação (afinal de contas, Arendt vivia prospera e luxuosamente), Hannah não apazigua o ânimo com que defende a sua tese e mantém-se firme no seu discurso. Contrariamente a Eichmann, contrariamente aos Nazis, contrariamente às “mentes banais.” Um filme maravilhoso.






Wakolda - El Médico Alemán (2013), de Lucía Puenzo

Estreada hoje em Espanha, esta produção argentina também relata uma (presuntiva) história real. Neste caso, uma das histórias de Josef Mengele, também conhecido como “O Anjo da Morte”, após a sua fuga para a Patagónia e outras zonas da América do Sul.
Este filme dá por adquirido que sabemos o background de Mengele. Médico da SS em Auschwitz e Birkenau, Mengele era um terrorista muito próprio. Conhecido por determinar quem morria e quem estava apto para trabalhar na chegada aos campos, foi na experimentação em humanos que mais se destacou. As suas experiências incluíam testar a eficácia e resistência dos fatos da SS em condições extremas (medir, por exemplo, quanto tempo aguentava um judeu em águas geladas com ou sem o fato), injetar substâncias que mudassem a cor dos olhos de forma a ver se se podia “provocar o arianismo”, transplantes sem anestesia, vivissecções,  tentar juntar bebés separados para induzir o estado de siameses, transplantar um terceiro olho em diferentes partes do corpo, criar circuitos fechados entre o sistema urinário e o digestivo e toda uma panóplia de atrocidades que tardariam páginas e páginas em descrever.
Estamos em 1960 e Mengele faz-se passar Helmut Gregor, um médico alemão que, imigrante na Argentina, se dedica à experimentação em suínos. Atraído pela “estranha harmonia em tanta imperfeição” duma rapariga de 12 anos, “Helmut”, qual Humbert Humbert, inicia uma fixação perversa pela jovem Lilith.
Insere-se no seu seio familiar ao alugar um quarto num hotel do qual são donos, e durante alguns meses experimenta uma hormona de crescimento apenas testada em animais. Lilith, pequena por defeitos genéticos e parto prematuro, é o perfeito espécimen para tornar um ser imperfeito numa sublime criatura ariana.  Ao mesmo tempo, Eva, mãe de Lilith, grávida de gémeos, é cobaia das experiências de Helmut, que, seguindo o método do seu ortónimo Mengele, usa um dos gémeos de controlo.
Contrariamente ao que aconteceu com Eichmann (também na Argentina em 1960), o Mossad nunca pôs as mãos no “Anjo da Morte”, que escapando para o Paraguai suspeita-se ter morrido no Brasil em 1979, vítima de afogamento acidental.
Contrariamente a Eichmann, Mengele é projetado como um ser frio, calculista e temível. Alex Brendemühl transmite esta imagem de uma forma absolutamente arrepiante.
Este filme serve para nos lembrar de duas coisas.
1)   Nem todos os Nazis sofriam da mesma reactividade de Eichmann. Alguns eram movidos por interesses pessoais e eram dominados não por um sentimento colectivo para sim por uma obsessão interior que não olhava a moralismos.
2)   Que a perseguição de ideias, especialmente aquelas que visam atingir algum estado de perfeição, pode-se tornar tão perigosa como a sua ausência. A consciência ética deve estar sempre presente na validação de qualquer ação, independentemente do seu presuntivo benefício para um ideal – seja ele científico, social, médico, etc. A título de exemplo pode-se referir o muito menos citado Walter Freeman, psiquiatra americano que, num frenesí para “erradicar a doença mental do mundo” efetuou milhares (cerca de 3400) de lobotomias cegas, aleatórias e profundamente desumanas, chegando a fazê-las sem condições de esterilidade, às três pancadas e em dois minutos. Até mesmo sem o consentimento dos “pacientes”.   E para os mais cépticos, isto passou-se ao longo dos anos 50’ e 60’ – ou seja, durante o choque da WWII.



Apesar deste post se basear fundamentalmente nos filmes que vi esta semana, vêm-me à cabeça outras duas obras relacionadas com o assunto, talvez até de forma mais profunda. Uma, também da esfera cinematográfica é Das weiße Band - Eine deutsche Kindergeschichte. – O Laço Branco (2009), do bi-galardoado Michael Haneke.
Em , Das weiße Band (Palma de Ouro 2009) , Michael Haneke entra nas profundezas psicodinâmicas daqueles que viriam a apoiar a Alemanha Nazi. O filme (aqui a minha memória já não é tão clara) centra-se na atmosfera ultra-repressiva duma pequena aldeia religiosa na Alemanha rural no período pre-primeira guerra mundial, algures entre 1910 e 1914. As crianças, os verdadeiros protagonistas, crescem num meio puritano e cruel. Como símbolo de castidade, são obrigadas a atar os braços por um lenço branco e é sobre elas que recai a primeira suspeita quando acontecimentos bizarros ocorrem na vila.
Haneke sugere-nos que não foi tanto uma motivação ideológica mas um vazio existencial e moral que realmente conduziu às loucuras expansionistas e sádicas da Alemanha durante a WWII; Sementes do mal, plantadas em 1910s e brotadas em  1930s.



Para compendiar todas estas perspectivas – Ideológicas, sociológicas, biológicas e psicológicas – está aquela que considero (dentro das poucas que referi) a mais importante obra sobre a génese do Nazismo.
Escrito nos Estados Unidos pelo psicossociólogo Alemão Erich Fromm, O Medo à Liberdade (1941).
Nesta obra Fromm defende que o ser humano, contrariamente aquilo que se possa crer, tem uma tendência “inata” para ceder a situações que restrinjam a sua liberdade individual. Que a espontaneidade que supõe tal liberdade é tão reprimida e alvo de estímulos negativos por parte da sociedade e dos nossos educadores, que nos sentimos mais cómodos sob a alçada duma mão que nos guie, embora nos aprisione. Que inconscientemente, embora voluntariamente, nos submetemos a um controlo global, massivo e alheio para evitar a solidão moral que advém da liberdade de pensamento.
Desenvolver e justificar esta ideia em poucas linhas é fútil e aos interessados aconselha-se que leiam o livro – perfeitamente inteligível. No entanto, é com base nesta premissa que Fromm intitula um dos capítulos de “A psicologia do Nazismo”. Nele, Fromm rejeita a ideia de que foram factores meramente económicos ou políticos (perda de poder devido ao tratado de Versalhes) que impulsionaram o nazismo. A sua tese é a de que houve uma motivação psicológica profunda por parte dos alemães para apoiar algo que os engrandecesse, e que no caso de Hitler, segundo uma análise ao Mein Kampf, foi uma necessidade de dominância sobre uma grande massa que o motivou a perseguir os seus ideais. O povo alemão pro Nazi, o Fromm divide-o em 2 grupos importantes:
- Os da classe alta, que tinham todo o interesse em preservar o seu estatuto social e até mesmo ganhar poder político.
- Os da classe média-baixa. Este é o grupo mais importante, não só pela sua dimensão, mas porque eram os que mais inferiorizados se sentiam. Eram aqueles que, segundo Fromm, sentiam uma maior necessidade de se ligar e pertencer a “algo maior que eles”, algo tão grande, que, incorporado como parte do próprio, engrandecia o (ilusório) eu.
Obviamente que nenhuma destas duas razões justificam o caminho para o holocausto. No entanto, aliados ao acriticismo que descreveu Hannah Arendt, eram os grandes motivadores para que fechassem os olhos e aceitassem qualquer argumento e suportar qualquer ação do governo. O que interessava era que eles não fossem afectados. O que interessava era uma Alemanha dominante, já que isso se traduzia num Eu dominante.
Por muito cépticos que possamos ser em relação a argumentos psicodinâmicos, a própria conduta narcisista de Walter Freeman II em realizar tantas lobotomias e a ser tão grande e importante se pode justificar com a sua relação paterna. Seu avô, Willam Keen e seu pai, Walter Freeman I,  eram médicos bem sucedidos e altamente reputados. Toda a infância de Freeman foi rodeada duma pressão brutal para o êxito que não estava, de todo, a ser correspondida pelas suas demonstrações, até à altura medíocres.

Para terminar, uma citação de um Founding Father dos USA, desta vez de um dos únicos dogmas a seguir sempre:

Nothing then is unchangeable but the inherent and inalienable rights of man.
Thomas Jefferson


1 comentário:

Rui Fernandes disse...

Vi a Arendt e chega de filmes que nessa matéria ando muito poupado. O filme tem os seus méritos mas é da Hannah que eu gosto. Por isso continuo a namorá-la.

 
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