Nesta semana o meu cinema focou-se na perspectiva
alemã do Nazismo e no fundamento sociopsicológico dos regimes autoritários.
Para além de interessantes, todos estes filmes coincidem na extrema importância
das suas análises, pois é na compreensão da génese dos fenómenos passados que
reside o poder de evitar reproduções futuras. Neste caso específico este
entendimento é imperativo, dado que foi exatamente a incapacidade de formular
juízos críticos e independentes que possibilitou que tamanhas barbaridades fossem
banalizadas ao ponto de se tornarem “Normais” e massivas. Aliás, como alguns
autores sugerem, foi o acriticismo e neutralidade, não a maldade, que causaram
o holocausto.
“I luoghi più caldi dell'inferno sono
riservati a coloro che in un periodo di crisi morale si mantengono neutrali “-Dante
Alighieri, in Inferno.
Der Untergang – A Queda:
Hitler e o fim do Terceiro Reich. (2004), de Oliver Hirschbiegel
Este filme, tão cinzento de estética como de tema, relata os últimos dias
de Hitler e dos seus fieis mais íntimos. Dá-nos uma imagem deprimente da
atmosfera cultivada entre os altos mandatários do partido Nazi e do desvario
mental que movia o homem que moveu milhões. Abril de 1945, passado quase
integralmente num bunker numa Berlim destruída e prestes a ser invadida pelos
Russos, assistimos ao fosso decadente que o terceiro Reich cavou antes de
finalmente cair.
Bruno Ganz é notável como Hitler e Hirschbiegel dota ao filme uma
atmosfera tão crua e desumana que podemos, mais que observar, sentir a angustia
inerente a toda a situação. Um filme a
não repetir.
Das
Experiment – A experiência (2001), de
Oliver Hirschbiegel.
Baseada na famosa “Stanford Prison Experiment” (quantas vezes não terá
sido citada para criticar a praxe académica), Das Experiment simula, através de
voluntários, os efeitos psicológicos de
desempenhar papéis de autoridade e submissão. 10 voluntários são sorteados para
fazer de guarda, 10 de prisioneiro. Durante duas semanas cada um tem que
cumprir o seu papel com aquilo que supõe ser o maior realismo e seriedade
possível, caso contrário não recebe os 4000 mil marcos prometidos.
Medíocre a vários níveis (especialmente nas side-stories incorporadas ao
protagonista), este filme, contudo, é eficaz na chamada de atenção que faz ao
apego ao role-playing e à desumanização sofrida pelos seus executantes. Os
guardas rapidamente aproveitam o novo “poder” para sobrecompensar a sua
embaraçosa condição pessoal e quando os abusos descarrilam não há oposição
dentro do próprio grupo, já que todos temem perder o seu lugar
privilegiado. Já os prisioneiros
mostram-se cada dia mais complacentes, submissos e destituídos de
individualidade. Mesmo com a possibilidade de revolta, a despersonalização é
tal que se volvem impotentes. Como bem nos sugeriu a guia de visita em
Auschwitz, “Já alguma vez pensaram porque é que os Judeus não se revoltaram?
Afinal de contas, eles não tinham nada a perder! Não era tão simples, tão
fácil? Tão evitável?.....Será?”
Hannah
Arendt (2012), de Margarethe Von
Trotta
Este filme biográfico, provavelmente o melhor (sem
dúvida o mais importante) da série aqui apresentada, mostra-nos um período da
vida de Hannah Arendt (e de forma dispensável por tão superficial, resquícios
da sua relação com Heidegger) na qual se manteve forte e convicta da sua
expressão individual não obstante as adversidades.
Judia, filósofa e ensaísta, é no papel de jornalista que viaja de Nova
Iorque, onde vive e lecciona alemão na universidade, a Israel para assistir ao
julgamento de Adolf Eichmann, tenente-coronel da SS, um dos maiores
responsáveis da logística necessária ao transporte de judeus para os guetos e,
por fim, campos de concentração.
Contrariamente às expectativas, não foi o habitual
arquétipo do Nazi – um ser cruel, temível e dominante – que Hannah encontrou.
Antes, um homem banal, comezinho, despersonalizado e totalmente submisso a uma
ideia pela qual nem nutria grandes afeções pessoais. Quando interrogado se
mataria os próprios pais se se provassem traidores ao Reich, Eichmann responde
afirmativamente, pois tinha jurado fidelidade ao Fuhrer. Hannah Arendt conclui que
Eichmann não é mais que um burocrata, uma vítima dum sistema que promove a
acefalia e o acriticismo, por muito bom que fosse no seu mester. E que, tal
como como Eichmann, não foi o Anti-semitismo mas esta “banalização do mal” que mobilizou
a maioria dos alemães a aquiescer o holocausto.
De volta a NY já com o artigo publicado, Arendt
tem quase toda a comunidade judaica contra si. Enviam-lhe ameaças de morte,
convidam-na a abandonar o seu posto na faculdade, insultam-na publicamente e
até mesmo velhos amigos lhe deixam de falar. Para além do marido, dos alunos e
de poucos íntimos, ninguém a apoia. No entanto, mesmo perante estas contrariedades
extremamente convidativas à resignação (afinal de contas, Arendt vivia prospera
e luxuosamente), Hannah não apazigua o ânimo com que defende a sua tese e
mantém-se firme no seu discurso. Contrariamente a Eichmann, contrariamente aos
Nazis, contrariamente às “mentes banais.” Um filme maravilhoso.
Wakolda
- El Médico Alemán (2013), de Lucía Puenzo
Estreada hoje em Espanha, esta produção argentina
também relata uma (presuntiva) história real. Neste caso, uma das histórias de
Josef Mengele, também conhecido como “O Anjo da Morte”, após a sua fuga para a
Patagónia e outras zonas da América do Sul.
Este filme dá por adquirido que sabemos o
background de Mengele. Médico da SS em Auschwitz e Birkenau, Mengele era um
terrorista muito próprio. Conhecido por determinar quem morria e quem estava
apto para trabalhar na chegada aos campos, foi na experimentação em humanos que
mais se destacou. As suas experiências incluíam testar a eficácia e resistência
dos fatos da SS em condições extremas (medir, por exemplo, quanto tempo
aguentava um judeu em águas geladas com ou sem o fato), injetar substâncias que
mudassem a cor dos olhos de forma a ver se se podia “provocar o arianismo”,
transplantes sem anestesia, vivissecções,
tentar juntar bebés separados para induzir o estado de siameses,
transplantar um terceiro olho em diferentes partes do corpo, criar circuitos
fechados entre o sistema urinário e o digestivo e toda uma panóplia de
atrocidades que tardariam páginas e páginas em descrever.
Estamos em 1960 e Mengele faz-se passar Helmut
Gregor, um médico alemão que, imigrante na Argentina, se dedica à
experimentação em suínos. Atraído pela “estranha harmonia em tanta imperfeição”
duma rapariga de 12 anos, “Helmut”, qual Humbert Humbert, inicia uma fixação
perversa pela jovem Lilith.
Insere-se no seu seio familiar ao alugar um quarto
num hotel do qual são donos, e durante alguns meses experimenta uma hormona de
crescimento apenas testada em animais. Lilith, pequena por defeitos genéticos e
parto prematuro, é o perfeito espécimen para tornar um ser imperfeito numa
sublime criatura ariana. Ao mesmo tempo,
Eva, mãe de Lilith, grávida de gémeos, é cobaia das experiências de Helmut,
que, seguindo o método do seu ortónimo Mengele, usa um dos gémeos de controlo.
Contrariamente ao que aconteceu com Eichmann
(também na Argentina em 1960), o Mossad nunca pôs as mãos no “Anjo da Morte”,
que escapando para o Paraguai suspeita-se ter morrido no Brasil em 1979, vítima
de afogamento acidental.
Contrariamente a Eichmann, Mengele é projetado
como um ser frio, calculista e temível. Alex Brendemühl transmite esta
imagem de uma forma absolutamente arrepiante.
Este
filme serve para nos lembrar de duas coisas.
1)
Nem todos os Nazis sofriam da mesma
reactividade de Eichmann. Alguns eram movidos por interesses pessoais e eram
dominados não por um sentimento colectivo para sim por uma obsessão interior
que não olhava a moralismos.
2)
Que a
perseguição de ideias, especialmente aquelas que visam atingir algum estado de
perfeição, pode-se tornar tão perigosa como a sua ausência. A consciência ética
deve estar sempre presente na validação de qualquer ação, independentemente do
seu presuntivo benefício para um ideal – seja ele científico, social, médico,
etc. A título de exemplo pode-se referir o muito menos citado Walter Freeman,
psiquiatra americano que, num frenesí para “erradicar a doença mental do mundo”
efetuou milhares (cerca de 3400) de lobotomias cegas, aleatórias e profundamente
desumanas, chegando a fazê-las sem condições de esterilidade, às três pancadas
e em dois minutos. Até mesmo sem o consentimento dos “pacientes”. E para os mais cépticos, isto passou-se ao
longo dos anos 50’ e 60’ – ou seja, durante o choque da WWII.
Apesar deste post se basear fundamentalmente nos
filmes que vi esta semana, vêm-me à cabeça outras duas obras relacionadas com o
assunto, talvez até de forma mais profunda. Uma, também da esfera
cinematográfica é Das weiße Band - Eine deutsche
Kindergeschichte. – O Laço Branco (2009),
do
bi-galardoado Michael Haneke.
Em , Das
weiße Band (Palma de Ouro 2009) , Michael Haneke entra nas profundezas psicodinâmicas
daqueles que viriam a apoiar a Alemanha Nazi. O filme (aqui a minha memória já
não é tão clara) centra-se na atmosfera ultra-repressiva duma pequena aldeia
religiosa na Alemanha rural no período pre-primeira guerra mundial, algures
entre 1910 e 1914. As crianças, os verdadeiros protagonistas, crescem num meio puritano
e cruel. Como símbolo de castidade, são obrigadas a atar os braços por um lenço
branco e é sobre elas que recai a primeira suspeita quando acontecimentos
bizarros ocorrem na vila.
Haneke sugere-nos que
não foi tanto uma motivação ideológica mas um vazio existencial e moral que
realmente conduziu às loucuras expansionistas e sádicas da Alemanha durante a
WWII; Sementes do mal, plantadas em 1910s e brotadas em 1930s.
Para compendiar todas estas perspectivas –
Ideológicas, sociológicas, biológicas e psicológicas – está aquela que
considero (dentro das poucas que referi) a mais importante obra sobre a génese
do Nazismo.
Escrito nos Estados Unidos pelo psicossociólogo
Alemão Erich Fromm, O Medo à Liberdade
(1941).
Nesta obra Fromm defende que o ser humano,
contrariamente aquilo que se possa crer, tem uma tendência “inata” para ceder a
situações que restrinjam a sua liberdade individual. Que a espontaneidade que
supõe tal liberdade é tão reprimida e alvo de estímulos negativos por parte da
sociedade e dos nossos educadores, que nos sentimos mais cómodos sob a alçada
duma mão que nos guie, embora nos aprisione. Que inconscientemente, embora
voluntariamente, nos submetemos a um controlo global, massivo e alheio para
evitar a solidão moral que advém da liberdade de pensamento.
Desenvolver e justificar esta ideia em poucas
linhas é fútil e aos interessados aconselha-se que leiam o livro –
perfeitamente inteligível. No entanto, é com base nesta premissa que Fromm
intitula um dos capítulos de “A psicologia do Nazismo”. Nele, Fromm rejeita a
ideia de que foram factores meramente económicos ou políticos (perda de poder
devido ao tratado de Versalhes) que impulsionaram o nazismo. A sua tese é a de
que houve uma motivação psicológica profunda por parte dos alemães para apoiar
algo que os engrandecesse, e que no caso de Hitler, segundo uma análise ao Mein
Kampf, foi uma necessidade de dominância sobre uma grande massa que o motivou a
perseguir os seus ideais. O povo alemão pro Nazi, o Fromm divide-o em 2 grupos
importantes:
- Os da classe alta, que tinham todo o interesse
em preservar o seu estatuto social e até mesmo ganhar poder político.
- Os da classe média-baixa. Este é o grupo mais
importante, não só pela sua dimensão, mas porque eram os que mais
inferiorizados se sentiam. Eram aqueles que, segundo Fromm, sentiam uma maior
necessidade de se ligar e pertencer a “algo maior que eles”, algo tão grande,
que, incorporado como parte do próprio, engrandecia o (ilusório) eu.
Obviamente que nenhuma destas duas razões
justificam o caminho para o holocausto. No entanto, aliados ao acriticismo que
descreveu Hannah Arendt, eram os grandes motivadores para que fechassem os
olhos e aceitassem qualquer argumento e suportar qualquer ação do governo. O
que interessava era que eles não fossem afectados. O que interessava era uma
Alemanha dominante, já que isso se traduzia num Eu dominante.
Por muito cépticos que possamos ser em relação a
argumentos psicodinâmicos, a própria conduta narcisista de Walter Freeman II em
realizar tantas lobotomias e a ser tão grande e importante se pode justificar
com a sua relação paterna. Seu avô, Willam Keen e seu pai, Walter Freeman I, eram médicos bem sucedidos e altamente
reputados. Toda a infância de Freeman foi rodeada duma pressão brutal para o
êxito que não estava, de todo, a ser correspondida pelas suas demonstrações,
até à altura medíocres.
Para terminar, uma citação de um Founding Father
dos USA, desta vez de um dos únicos dogmas a seguir sempre:
Nothing then is unchangeable but the inherent and
inalienable rights of man.
Thomas Jefferson
1 comentário:
Vi a Arendt e chega de filmes que nessa matéria ando muito poupado. O filme tem os seus méritos mas é da Hannah que eu gosto. Por isso continuo a namorá-la.
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