terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Loucura




Encontrava-me deambulante no Metro do Saldanha e, dada a necessidade de queimar tempo para a aula de violoncelo, decidi visitar a mini-feira-do-livro montada entre a linha vermelha e amarela, nos interstícios do último e penúltimo piso subterrâneo daquela labiríntica estação. Apesar de maioritariamente desinteressante, é de relevar alguns exemplares de autores de renome a preços simbólicos de Euro e meio - Dois euros. De entre colecções antigas da Visão-abril/controljornal e outras semelhantes, destacava-se um livro da Umbreiro de que nunca tinha ouvido falar, mesmo tendo já feito uma apresentação sobre o autor.
"Loucura", uma novela de 80 páginas, figura-se entre as mais desconhecidas, mas porém louváveis, prosas de Mário de Sá-Carneiro.
Datada de "Lisboa, Maio-Junho 1910" por um inidentificado narrador, Loucura é a história da vida e morte de Raul Vilar, um distinguido escultor, cujo inexplicável suicídio é analisado pelo narrador - seu melhor amigo.
Em jovem inimigo das artes, da felicidade, sociabilidade e amor, Raul transforma-se num apaixonado e venturoso romântico, que encontra na arte uma forma de vida.
Já "Sinistramente esquisito" em jovem (como tão eloquentemente nos narra o seu BFF), Raul experencia invulgares oscilações humorísticas, acompanhadas de juízos pedantes e idiossincráticos, retocados por uma loucura sombria e, ao mesmo tempo, romanticamente poética. Atormentado com as futilidades físicas que rodeiam o amor, Raul procura provar a Marcela, sua mulher, que lhe ama a alma e não o corpo, preparando-lhe uma surpresa que se repercutirá também nele próprio, desencadeando o desenlace trágico que serve de tema para o livro.

Não creio ser demasiado forçada a interpretação de que Sá-Carneiro se inspirou na morte do seu amigo Tomás Cabreira Juníor (ou no mesmo enquanto vivo, pois não sei se esta novela é anterior ou posterior à sua morte) que se suicidou na escadaria do Liceu Camões, para criar esta lutuosa novela. Melhor amigo de Mário, também ele era artista, e foi com quem co-escreveu, em 1910 "Amizade", publicada em 1912.
"Locura", um livro que se bebe de um trago, fala-nos de loucuras existenciais, amorosas e artísticas que, num paroxismo extremo, resultam no mais louco de todos os actos. Sá-Carneiro começara já a tecer a sua loucura, revelada ao mundo em 1916.
Eximiamente bem escríto, fluidamente narrado e desprovido de descrições irrelevantes à acção, "Loucura" é aconselhável a todos os apreciadores de literatura portuguesa e não portuguesa. Pecará a obra de Sá-Carneiro por ser monotemática? Ou teria Fernando Pessoa razão quando afirmou que "Sá-Carneiro não teve biografia. Teve só génio. O que disse foi o que viveu"? Inclino-me mais para o segundo.

"Se um dia porém a sorte favorecesse os loucos, se o seu número fosse superior e o género da sua loucura idêntico, eles é que passariam a ser ajuizados: Na terra de cegos quem tem olho é rei, diz o adágio: na terra de doidos, quem tem juízo, é doido, concluo eu.
O meu amigo não pensava como toda a gente...Eu não o compreendia: chamava-lhe doido...
Eis tudo." - Mário de Sá Carneiro.


Nota Final: 5/5


Q

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