quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Ray


Caracterizar, dum ponto de vista aderecista, Ray Charles, não parece, à primeira vista, tarefa difícil. Algum critério na escolha do actor, tendo em conta factores como a idade apropriada para a altura da vida a ser retratada, origem e tez semelhantes à do artista, escolha duma indumentária apropriada à época e, acima de tudo, semelhante ao observável em fotografias, uns Wayfarer que se adeqúem ou qualquer outro tipo de óculos escuros que o músico usasse e temos uma aproximação minimamente sensível a um dos grandes reis do R&B, Gospel, Soul e Blues.
Ressuscitá-lo, contudo, já não é tão fácil.
Diz-se que depois da morte não há vida e que só vivemos uma vez; que a reencarnação não passa de um mito e que a imortalidade é uma fantasia. Felizmente, a arte discorda.
Através da poesia imortalizam-se os poetas. Através dos romances os romancistas. Os sons prolongam a vida dos músicos e os filmes ressuscitam actores e realizadores.
Mais raro é, porém, encontrar artistas que fiquem imortalizados por várias artes, principalmente quando nelas nem participam. Val Kilmer, Kyle MacLachlan e outros garantiram a eternidade no cinema a Jim Morrison e o resto dos The Doors no soberbo e injustamente vaiado “The Doors”, de Oliver Stone; Scorcese garantiu o mesmo a Jake La Motta e Howard Hughes, pugilista e magnata, respectivamente, e pelo que parece (mas ainda não vi) Todd Haynes fê-lo com Dylan.
Ontem, inesperadamente, descobri outro caso de dupla imortalização. Em Ray, uma obra-prima dos tempos modernos, não foi só o músico a ficar registado através do cinema. Jamie Foxx, out of the blue and of the blues, mostrou-se digno de pelo menos uma GRANDE página na história do cinema.

Taylor Hackford, celebrizado em ’97 pelo seu filme “The Devil’s Advocate”, provou que Tarantino não é o único realizador com bom olho para actores desconhecidos ou pouco divulgados no mundo do cinema. Formando um elenco com caras que nos são, acima de tudo, familiares de séries; Kerry Washington – Boston Legal; Regina King – Sandra Palmer em 24; Harry Lennix, 24; ER e Capitão Locke no Matrix; Patrick Bauchau – Sidney em The Pretender (série muito boa e pouco falada), entre outros, mas que desempenharam óptimos papéis e mostraram-se aptos para novas oportunidades nunca antes lhes concedidas. Imagino neste momento o leitor a questionar-se sobre o anacronismo de alguns destes factos. Sim, é verdade que algumas destas séries são posteriores a RAY (2004), mas mantém-se o facto: Actores de séries.

Outro pormenor interessante foi a necessidade de apenas dois actores para desempenhar o papel de Ray (Jamie Foxx – adulto e C.J. Sanders – criança), não tendo sido necessário fazer alterações em nenhum deles a nível facial ou físico para se ajustarem à idade do músico. Este facto deve-se à escolha de Hackford de registar apenas duas fases da vida de Ray:
-A infância, momento da vida em que Ray Charles Robinson, um pobre rapaz oriundo do Oeste da Flórida (Greenville) assiste à morte do irmão pela qual se sente responsável (fardo com que vai carregar para o resto da vida) e a perda da vista, que se tornou total quando tinha sete anos.
- O seu período mais controverso, agitado, e, provavelmente, mais interessante. Os seus primeiros 20 anos como músico (1946-1966). Assistimos à sua ida para Seattle onde começa a gravar e conhece Ahmet Ertegun(Curtis Armstrong), o turco que fundou a Atlantic Records.
Um facto curioso acerca de Ahmet, é a forma como aparece caracterizado psicologicamente neste filme. É, de longe, a personagem mais enternecedora. De todos, é o único que aceita imediatamente tudo o que Ray lhe propõe, que não o julga pelas suas idiossincrasias e que o ajuda nos maus momentos, em vez de o criticar. Quando Ray abandona a sua editora pela ABC Paramount, Ahmet mostra-se solidário com o músico, que por outros é visto como pérfido, e apoia-o na sua decisão, independentemente do quão penalizante é para si. Mencionei este pequeno parêntesis porque foi a morte do mesmo homem, (1923-2006) que fez com que os Led Zeppelin se reunissem em 2007 no O2 Arena para fazer um concerto (inteiro), algo que não faziam desde a morte do John Bonham, em ‘80. He must have been quite something….
O filme continua com uma exibição magistralmente realizada de partes importantes da vida de Ray no intervalo ‘46-‘66. Desde o seu casamento pouco saudável com Della Bea às suas infidelidades frias e insensíveis com Mary Ann Fisher e Margie Hendricks (a primeira uma cantora de Gospel que “contratou” para trabalhar consigo e a segunda uma das Raylettes) à sua contínua e exponente dependência de heroína. Assistimos também à sua evolução enquanto músico e às sucessivas metamorfoses que as suas composições foram experienciando, desde as suas fusões de Gospel com Blues e à sua passagem para o Country.
Os últimos 40 anos da vida de Ray são guardados para o epílogo, em que somos informados da sua consistente e afamada carreira, agora, livre de drogas. O ultimato de Della Bea foi bem claro e bem aceite: “Desta vez não é a tua família ou as tuas amantes, de quem não queres saber assim tanto, que perdes. É a tua música. Larga o veneno.”

Depois de tudo isto, contudo, não resisto a voltar a falar da prestação(vencedora de oscar) de Jamie Foxx. Não só é ele que toca no piano tudo aquilo que ouvimos, como a sensação com que ficamos é que aquele não é o mesmo homem que fez o Miami Vice ou o Solista, mas sim o grande monarca com “Ay” que jamais será esquecido na história da música e, possivelmente, do cinema.
Uma obra-prima dos tempos modernos.

Nota final: 5/5

Q

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